Já vi este filme sete ou oito vezes, mas estou ansioso por vê-lo pelo menos ainda mais uma vez. A razão é simples: trata-se de um dos "filmes da minha vida" (como são "Johnny Guittar", "Gertrud", "India Song", "Lillith" e alguns mais). Falo de "Deus Sabe quanto Amei", que se intitula em inglês "Some Came Running", obra de Vincente Minnelli a ser projectada em cópia nova dentro de dias.
Quando me colocam a pergunta da praxe (qual o filme...?), raramente cito este Minnelli. Não porque ele me afecte menos do que os outros, mas talvez precisamente pelo contrário: porque indicá-lo acaba por ser excessivamente íntimo, como se estivesse a revelar um segredo, uma ferida indizível. E é ainda por isso que me custa vê-lo (já me aconteceu) com um público boçal e agressivo, que se ria dos excessos de Shirley MacLaine (excessos em tudo: no amor, na maquilhagem, na generosidade, na infantilidade, na vontade de compreender, na capacidade de admirar, na precipitação do destino que a persegue), quando nessas cenas tocantes e admiráveis gostaríamos de a proteger, resgatar e vingar da inclemência dos homens.
Alguns saem da projecção com os olhos cheio de lágrimas silenciosas (é o meu caso). Outros riem porque uma prostituta que julga que, pelo facto de amar alguém, consegue ultrapassar as diferenças de classe, de distinção, de educação, de cultura, de gosto só pode ser um motivo de chacota. Mas Shirley é sublime: sem defesa, exposta, vulnerável, tontamente ajoelhada diante dos textos de Sinatra, o escritor que ela não entende - mas sempre sublime com os seus lábios esborratados, os seus bichos de peluche, os seus desequilibrados saltos altos.
Sinatra sabe nesse momento que nenhum amor (sobretudo que nenhum amor bem-comportado como aquele que ele insiste em ter com a professora, Marta Hyer) poderá comparar-se àquele que tem apenas em sua defesa o facto de ser somente isso: amor sem mais nada, numa nudez nupcial e pura. E que se refugia na frase que Shirley repete quando sente que a podem agredir na fragilidade dos seus sentimentos: "Não se pode brincar com essas coisas. Sou um ser humano."
Por vezes a humanidade toca o seu próprio chão e nós sentimos que há um outro som possível para a verdade. Minnelli consegue dizê-lo da forma mais subtil e fulgurante. Por isso o aroma de morte que envolve as cenas de ameaçada felicidade é mais terrível do que muitas tragédias. É a sensação de uma injustiça infinita, de um escândalo inteiramente insuportável. Tanta vida, tanto amor afinal para coisa nenhuma. Mas são coisas tão nenhumas como esta que ainda nos fazem chorar.