Amores de Perdição

Comecemos por uma citação de João Bénard da Costa, numa das suas superlativas notas biográficas, precisamente sobre Vincente Minnelli, no catálogo do Ciclo de Cinema Americano dos Anos 50: "Valeu-lhe o 'delírio' da crítica francesa, a tal ponto que Jean Domarchi o comparou um dia a Heidegger (Minnelli não estranhou, provavelmente por pensar que se tratava dalgum coreógrafo ou encenador alemão)".

Respondendo ao terrorismo crítico com adequada ironia, João Bénard coloca a questão Minnelli numa dimensão curiosa. De facto, o que faz a glória do seu cinema é o que pertence ao domínio do cinema, independentemente da cultura (e poucos procuraram tanto a caução da grande pintura ou da grande literatura quanto ele) que o precede ou contextualiza. Quando comparamos com outro mestre do melodrama, Douglas Sirk, então as diferenças aparecem claras: à vasta cultura e ao distanciamento refinado do alemão, opõem-se um pragmatismo e uma "desvergonha" bem americanos.

Há em "Deus Sabe Quanto Amei" (1958) um momento que comprova à exaustão esta necessidade de ser directo e explícito: a personagem de Frank Sinatra chega ao hotel e, para provar-nos que é escritor, tira da mala cinco livros (edições antológicas de divulgação) de cada um dos grandes nomes da ficção modernista americana: Faulkner, Thomas Wolfe, Hemingway, Fitzgerald e Steinbeck. Se se comparar com o cuidado que Sirk põe na apresentação de "Walden", em "O Que o Céu Permite", teremos bem a medida das diferenças.

Defeito que diminui o seu valor como cineasta? Não: feitio, a dar-lhe, aliás, um olhar distintivo e único, capaz do máximo de requinte no âmbito do comezinho e do vulgar, refazendo Van Gogh ou encharcando de luz e cor uma pirosa feira popular de uma cidadezinha do Midwest.

O material de "Some Came Running" não era da melhor qualidade. Segundo livro de um escritor, James Jones, que tivera na estreia, com "Até à Eternidade" direito à glória, o romance teve más críticas e parecia inadaptável, cheio de "flash-backs" e digressões. O que Minnelli faz é pegar na história com a intenção de a reduzir a um melodrama de camaradagem, amor e morte, sem quaisquer preocupações psicologistas ou sociológicas. A escolha de Sinatra para o herói pusilânime, prolongando de certo modo o seu oscarizado Maggio em "Até à Eternidade", aparece como um golpe de génio. Em vez da neutra tranquilidade de Glenn Ford, inicialmente escolhido, optava-se pelo nervoso "underacting" de Sinatra, tão alcoolizado e tão fora do real como a sua personagem. A seu lado, quem melhor do que o "buddy" Dean Martin, duro e pouco à vontade - logo, perfeito para uma personagem sem espessura nem contornos bem definidos?

Filme de mulheres

No entanto, "Deus Sabe Quanto Amei" é sobretudo um filme de mulheres, são as personagens femininas as únicas que fazem sentido num mundo de onírico desespero: Shirley MacLaine chega de autocarro a uma cidade que desconhece, seguindo um soldado bêbado conhecido na véspera. Oferece-se inteira e não hesita em disputá-lo com a sua rival, a professora pudica de Martha Hyer, na sequência capital do filme. Numa sala de aulas vazia, uma figura quase cómica de palhaço, com uma inacreditável mala em forma de coelho, e vestida de estereotipada prostituta barata, pede à quintessência da elegância provinciana que lhe deixe o homem que ama.

Minnelli prova aqui que é o mestre incontestado do Cinemascope, fazendo campo/contracampo, a que o ecrã largo dá uma amplitude total. Os pólos opostos, a que ama sem limites e a quase frígida que não consegue amar, sem pensar em conveniências e regras sociais, afrontam-se perdidas num campo largo que as torna mais fortes e mais vulneráveis.

A evolução da MacLaine como personagem faz avançar a acção, ela é uma das que chega a correr (como indica o título original) atrás de uma miragem, afasta-se para o seu mundo de "saloon", numa espécie de "western" serôdio, com um jogador que nunca tira o chapéu, Dean Martin. E regressa, quando já perdeu Sinatra para uma outra miragem de respeitabilidade, que Martha Hyer representa, de novo com o penteado refeito, depois da cena de amor em que perde os "ganchos da virgindade".

Aliás, esta personagem da professora com veleidades intelectuais, vulcão coberto de gelo, possui contornos sirkianos. Análogo ao mundo codificado e elegante de Sirk é o fabuloso plano em que Sinatra invade o quarto de Martha Hyer e fica "aprisionado" no espelho. Só que o "palhacinho" apaixonado de MacLaine, com as mais pirosas farpelas do mundo e a inacreditável almofada de feira, que pediu a Sinatra, desequilibra o filme para o lado do burlesco, do patético sem remissão. Há uma forma masoquista de amar que comanda o seu passo de corrida para a perdição; quando Sinatra lhe pergunta (indignamente) se seria capaz de limpar a casa, MacLaine ilumina-se no "Posso?" e entrega-se à sua condição de demasiado humana para se aperceber da humilhação.

A sequência da feira com todas as luzes e cores no maior ecrã do mundo, com tudo a ocorrer simultaneamente, baralha os tempos que pouco sentido já faziam. Quanto tempo passou desde que Sinatra deixou a cidade? Quantos dias decorrem desde o seu regresso? Que interessa? Quase todas as mulheres deste filme de mulheres vão partir "a correr": a secretária, amante de Arthur Kennedy, espera a camioneta acompanhada pela mãe, enquanto a filha deste foge da hipocrisia conjugal. MacLaine "foge" para os braços do seu amado, morrendo por ele. Martha Hyer é a que nunca foge, presa da sua personagem.

Na apoteose da perdição, antes do belíssimo "travelling"sobre o rio, na cena do funeral, os homens revelam a sua impotência: Sinatra é "possuído" por uma morta, o assassino fica como um zombie, Dean Martin é, ao longo de todo o filme, um fantasma de um mundo passado, conservado em álcool. Resta a que passou demasiado depressa para se aperceber que o seu desejo de amar não era daquele mundo.

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