António Paulouro: o jornalista e o seu jornal

António Paulouro, fundador e director do "Jornal do Fundão", faleceu ontem aos 87 anos, na sua terra natal, o Fundão. Era uma morte esperada desde domingo, quando entrou em coma profundo, vitimado por um acidente vascular cerebral. O funeral realiza-se hoje às 16h00.António Paulouro teve uma intervenção política assinalável. No regime democrático foi deputado nas listas do PRD pelo círculo de Castelo Branco, e candidato por diversas vezes em lista do PS. No Estado Novo foi vice-presidente da Câmara do Fundão, tendo saído em ruptura com o regime salazarista devido a pressões da censura sobre o seu jornal, que rejeitou. Foi igualmente autor de alguns livros, mas é ao jornalismo que o seu nome ficará para sempre ligado e foi isso que o Sindicato dos Jornalistas quis sublinhar quando o fez sócio honorário, em 1996."Jornal do Fundão", uma excepçãoUm jornal quando nasce tem sempre o sonho de fazer História, mesmo se na maioria dos casos a aventura fica pelo sonho. O "JF" é uma gloriosa excepção e se, passados 56 anos, permanece como o "mais lido semanário das Beiras", com projecção nacional e uma indesmentível penetração junto das comunidades portuguesas no estrangeiro, isso deve-se, antes de mais, ao seu fundador, que contra tudo o que prudência aconselhava nele investiu uma pequena fortuna, que obtivera no pós-guerra e que a custos actuais deveria equivaler a 170 mil euros (34 mil contos). O preço do volfrâmio, com o fim das hostilidades, caíra em flecha e as múltiplas explorações mineiras em redor do couto da Panasqueira foram abandonadas. A maquinaria era vendida como ferro-velho a sucateiros, que se tinham associado em cartel e impunham os seus preços. Num golpe de audácia, António Paulouro, então com 31 anos, conseguiu cobrir a proposta de um grupo do Porto num desses negócios. Fechadas as contas realizou um lucro de 500 contos. O pequeno órfão, filho de mestre-sapateiro, republicano dos quatro costados numa família de monárquicos, estava rico. Mas preferiu criar um jornal a gozar os rendimentos.António Paulouro ficou órfão de mãe aos cinco anos. A família de três crianças menores ficou entregue ao pai, que tinha oficina de sapataria na Praça Velha, com vários aprendizes ao seu serviço. Solidários entre si, os três órfãos cedo revelaram as suas capacidades e aos 11 anos já António Paulouro conseguia arranjar o seu dinheirinho como paquete da secretaria judicial, com a vantagem de aí poder ler livros. Desse tempo nasceu a vontade da escrita e, através dela, de uma intervenção social.1926 foi o ano do golpe do 28 de Maio e António Paulouro cresceu à sombra do Estado Novo. Aos 14 anos, o jovem Paulouro, afastado o projecto de se integrar nos Adueiros, antecedente dos Escuteiros de Portugal, que o capitão Barros Basto animava no Porto, e funcionário no grémio dos produtores de trigo, tornou-se um activista do salazarismo. A sua carreira dentro do regime salazarista parecia certa e segura. Todos lhe previam um futuro político e José Hermano Saraiva, também em ascensão, escolheu-o para seu aliado local, quando fundou o "Jornal do Fundão" - que afinal iria ser a fonte de muitos dissabores políticos.O jornal apresentou-se no seu primeiro editorial, "Rumo", com um projecto de intervenção cívica assente na fraternidade: "No nosso posto estaremos ao lado dos que trabalham e dos que sofrem, em fraterna compreensão que não é de hoje, mas de sempre." Podiam ser apenas palavras, mas a verdade é que o director nunca consentiu que as desmentissem. O António Paulouro podia ser um fiel salazarista; mas o director do "JF" seria sempre politicamente independente e o jornal o porta-voz dos interesses da grei - dentro de uma visão à António Sérgio.Pagou caro sobrepor a verdade jornalística aos interesses políticos dos grupos constituídos. O caso de "Luuanda"Em 1965, António Paulouro convidou Alexandre Pinheiro Torres para coordenar um suplemento literário, que teria por título "Argumentos". O primeiro número ficou aprazado para 23 de Maio. O coordenador do suplemento era igualmente membro do júri do Grande Prémio da Novela e no dia 15 desse mês acordou dar o galardão a Luandino Vieira, pelo seu livro "Luuanda". Amândio César escreveu no "Diário de Notícias" que tinham dado o prémio a um "terrorista" e no dia 21 de Maio a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE) foi saqueada por legionários, protegidos pela polícia do regime, que deixaram a inscrição: "Agência dos terroristas na metrópole". Luandino Vieira, militante do MPLA, estava preso no Tarrafal.António Paulouro viu que estava metido numa camisa de onze varas, pois o suplemento era dedicado a Luandino Vieira e ao livro premiado. Porém, os artigos tinham sido visados pela comissão de censura (antes do dia 21), por isso ele podia publicá-los. Agir de outra maneira seria auto-censura. E assim o "Jornal do Fundão" foi a única publicação a dar conta de quem era o autor do livro premiado.A repressão foi feroz: o "JF" foi suspenso por seis meses e, se viesse a reaparecer, ficava obrigado a apresentar as provas aos serviços centrais da censura, em Lisboa.Apesar dos custos que isso representou, António Paulouro manteve o "JF" seis meses parado. Quando terminou a sanção, relançou-o com redobrado vigor, fazendo-o porta-voz da amizade luso-brasileira e colocando-se na divulgação das vanguarda literárias. Foi assim que à beira do "JF" surgiu o "Arco-Íris", revista coordenada por Mário Henriques Leiria e de que faziam parte os poetas António José Forte e Raul de Carvalho, já falecidos. Outro título nobre que saiu do "JF" foi a revista de poesia "Nova", dirigida por Herberto Helder. Carlos Drumond de Andrade e João Cabral de Melo Neto foram colunistas frequentes do "JF" e Kubitschek de Oliveira, fundador de Brasília, veio a Portugal visitar Belmonte, terra de Pedro Álvares Cabral, a convite do "JF".

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