Jivago - um poeta no meio de uma revolução
Inicialmente os caminhos de Boris Pasternak e da Revolução russa não colidiram. Ele tinha a sua vida e os revolucionários a deles. "Doutor Jivago" ainda vinha longe. Era uma coexistência quase perfeita. Foi o tempo de "Minha Irmã, a Vida", um livro de poemas aparecido em 1922, onde o autor descreve os acontecimentos de 1917 com uma linguagem metafórica que não só não fez zangar ninguém como o tornou conhecido. Seguiram-se os livros de poemas "Doença Grave", uma visão da guerra civil, e "O Ano de 1905", este mais voltado para a história, no caso a insurreição precursora da revolta leninista, e o romanesco "Spektorski", retalhos da vida de um jovem intelectual de antes da Revolução, obra esta já marcadamente crítica - o escritor tornara-se um independente. Mas depois veio o estalinismo e o terror dos anos 1936-38, o período de todas as arbitrariedades, de todas as perseguições. Ninguém estava acima de suspeitas. Principalmente quem, como Pasternak, tinha caído no goto ao leninismo, pecado capital por essa altura. De acordo com os especialistas do escritor russo - e mais tarde soviético -, o facto de Bukharine, um dos cônsules herdeiros do chefe da revolução bolchevique, o ter considerado (I Congresso dos Escritores) um dos maiores expoentes das letras soviéticas terá complicado ainda mais a vida do escritor. Praticamente silenciado, sobrevive então de traduções - Keats, Verlaine, Shakespeare, Goethe, Shelley. "Os Comboios do Amanhecer" e "O Espaço Terrestre", um apelo à glória e ao calor da humanidade, atraem de novo as iras dos censores e da poderosa União dos Escritores. Boris Leonidovitch Pasternak é apontado como um perigoso "formalista". Aparecerá mais tarde descrito na "Grande Enciclopédia Soviética" ainda como "idealista e individualista". É neste ambiente de cerco que o escritor parte para a sua "datcha" de Peredelkino, a poucos quilómetros de Moscovo, de onde escreve uma carta a Nadezda Mandelstam, viúva do poeta Osip Mandelstam, seu amigo, morto num campo de concentração soviético em 1938, onde dá conta do seu trabalho: "(...) Agora tenho a possibilidade de trabalhar durante cerca de três meses numa coisa totalmente minha, sem ter que pensar no ganha-pão. Quero escrever uma prosa, possivelmente em 10-12 capítulos, não mais, sobre a nossa vida, de Block até à última guerra. Podes imaginar a pressa com que escrevo e o meu grande receio de que algo possa acontecer antes de o meu trabalho estar terminado". A prosa referida na carta, de 26 de Janeiro de 1946, é "Doutor Jivago". Editado em ItáliaTerminado em 1956 e recusado pela revista "Novy Mir", o que levou à sua publicação por um editor de Milão, Feltrinelli, um comunista que Moscovo tentou em vão convencer a devolver os originais, "Doutor Jivago" é a história, fortemente autobiográfica, de um amor trágico sem lugar nem espaço num mundo em fase de mudanças radicais. Iuri Jivago, um jovem e conhecido médico, e poeta, apesar de estar implicado indirectamente na revolução, nega comprometer-se com ela, retirando-se com a família para a casa da sua mulher na Sibéria. Capturado por guerrilheiros vermelhos e obrigado a prestar-lhes assistência médica durante três anos, volta a Varikino, mas a sua família já partiu para Moscovo, emigrando posteriormente para o estrangeiro. Substituindo Tonia, a sua até então companheira, aparece Lara, mulher do comissário vermelho Strelnikov, unindo-se a ela num amor trágico. A queda política de Strelnikov, que mais tarde será condenado à morte e se suicidará, põe em perigo a vida de Lara e de sua filha, que fogem para a Mongólia. Jivago, que tinha prometido acompanhá-las, fica em Varikino, afundando-se na apatia, apesar da ajuda dos seus amigos Gordon e Dudorov. Vive com a filha do seu porteiro, Marona, de quem tem duas filhas. Lara também tem uma filha de Jivago. No fim, depois de ter desaparecido, o médico-poeta é encontrado morto, no dia em que ia ocupar um lugar numa clínica. Lara também morre, mas num campo de concentração. Acusado pela poderosa União dos Escritores de ter "interpretado levianamente a revolução de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção social da URSS", Pasternak, entretanto galardoado com o Nobel da Literatura, morreu em Maio de 1960, em Peredelkino, doente e impossibilitado de discutir as ideias-mestras da sua obra, principalmente a mais polémica, "Doutor Jivago", ou de se defender das acusações da "numenklatura" estalinista. Essa, por exemplo, de ter interpretado "levianamente" a revolução de 1917, promovendo um homem, ao fim e ao cabo ele próprio, que parece planar, como um mártir, sobre as fragilidades dos outros, e despromovendo os que se revoltaram contra as desigualdades, derrubaram o czar, o epicentro dos males russos, e inauguraram uma pátria sem amos. Porém nem Jivago nem o seu mentor são contra-revolucionários, são tão-só a-revolucionários, e, enquanto poetas, entusiastas da humanidade e da natureza num tempo e numa terra então menos virados para as pessoas do que para a revolução. O estilo da obra, uma combinação do lírico poético com o épico descritivo, é aliás a marca de água desse desafio que continua a suscitar admiração.