Está pronto para entrar na Cosa Nostra?
Com os velhos padrinhos atrás das grades - de onde continuam a lançar ameaças aos políticos italianos - a Mafia adapta-se aos novos tempos. As mulheres pegam em armas para fazer ajustes de contas com as suas inimigas; a nova geração estuda Direito e Gestão de Empresas. É o passado e o presente da Cosa Nostra. Está pronto para entrar?
Os rituais"Ele é como nós""Está pronto para entrar na Cosa Nostra? Sabe que não há caminho de regresso - entra-se na Cosa Nostra com o nosso próprio sangue e só se sai derramando mais do nosso sangue". Entrar na Mafia implica um ritual: pica-se a mão direita (a que dispara), e deixam-se cair gotas numa imagem religiosa que em seguida é queimada na palma da mão. Depois disso, e do juramento de fidelidade, o novo membro passa a ser apresentado a outros mafiosos de forma discreta: "ele é como nós" ou "ele é a mesma coisa". Durante muitas décadas na base do poder da Mafia esteve a lei da "omertá", o silêncio (rompido pelos arrependidos). Ninguém fala da organização, ninguém diz o que sabe. "Não sei nada, não vi nada, não estava lá, e se estava lá estava a dormir". A própria morte tem também os seus rituais. Se um mafioso é encontrado morto com uma mão cortada em cima do peito, significa que roubou; se os seus olhos são arrancados e colocados dentro da mão quer dizer que matou alguém ligado à Cosa Nostra; se os seus orgãos sexuais estão enfiados na boca significa que teve um caso com a mulher de outro mafioso; se levou um tiro na boca significa que falou demais.Liggio, "Totó, u curtu" e ProvenzanoDominaram a Mafia siciliana nas últimas décadas. Primeiro havia Luciano Liggio, um homem que, dizem os que o conheceram, "gostava de matar" e tinha súbitas mudanças de humor. Foi ele quem matou o Dr. Michele Navarra, chefe da mafia local a seguir à II Guerra e conhecido em Corleone como "ù Patri Nostru" (Pai Nosso). A 2 de Agosto de 1958, Liggio preparou uma emboscada e assassinou Navarra com 112 balas. Ao seu lado estava um jovem mafioso, conhecido como "Totó, u curtu" devido à sua baixa estatura, e que se havia de ser o mais famoso e sanguinário chefe corleonese, Totó Riina. Este tornou-se um fugitivo à justiça (durante mais de 20 anos) e foi ganhando um poder que começava a preocupar Liggio. Os planos deste para desacreditar o seu antigo "número dois" não chegaram a ter sucesso porque Liggio foi preso - e quando mais tarde foi elaborado um plano para a sua fuga da prisão, Riina fez tudo para se assegurar que ele falharia.Liggio acabou os seus dias na prisão. Não fumava, mas para as sessões do julgamento encomendava charutos, num esforço patético para dar a imagem de um "boss" poderoso. Na sua cela, dedicava-se a pintar paisagens da Sicília a partir de postais. Cá fora, tornava-se o chefe incontestado da Cosa Nostra siciliana, e eliminando, a partir dos anos 80, todos os adversários. Só em Janeiro de 1993, depois de mais de 20 anos de fuga, é que a polícia capturou o homem a quem chamavam "a Besta". No tribunal, Riina fez o papel de camponês ignorante, dizendo "eu não sou aquele que dizem os jornais...". Sucedeu-lhe o seu cunhado e "número dois" Bernardo Provenzano, descrito por um "arrependido" como alguém que "dispara como um deus, mas tem os miolos de uma galinha". Desde 1963 que a polícia o procura. Uma das pistas encontradas foram as cartas da sua mulher a dar-lhe notícias da família e a explicar-lhe como é que se lavam as meias com água fria."Signora boss"Nos finais de Maio, dois grupos de mulhares de clãs rivais da Mafia napolitana, os Cava e os Graziano, envolveram-se em acesa discussão num salão de beleza na localidade de Quindici. Trocaram insultose bofetadas, e as Graziano perderam a batalha e regressaram a casa humilhadas. A vingança não se fez esperar. No dia 26, cinco mulheres do clã Cava seguiam num automóvel quando foram atingidas por uma saraivada de tiros. Clarissa Cava, 16 anos, morreu, com o rosto destruído pelas balas disparadas à queima-roupa. A tia, Michelina Cava, de 51 anos, que guiava o carro e tentou desesperadamente a fuga, também morreu, assim como a amiga Maria Scibelli, 53 anos. Outras duas ocupantes do veículo ficaram gravemente feridas.A vingança dos Graziano não é diferente de outros ajustes de contas da Mafia. A não ser o facto de, pela primeira vez, mulheres terem pegado em armas para fazer justiça. Quem disparou as pistolas de calibre 40 contra as inimigas foram Stefania e Chiara, 22 e 21 anos, netas do chefe mafioso Luigi Salvatore Graziano. Trata-se, dizem os peritos, da entrada das mulheres - "signora boss", como lhes chamam - nos domínios até aqui reservados aos homens. Agora que muitos dos seus pais, irmãos ou maridos estão atrás das grades, elas avançam. Outros minimizam o fenómeno. "As mulheres sempre estiveram presentes", diz Attilio Bonzoni, correspondente do diário "La Repubblica" em Palermo. "Conheciam perfeitamente os negócios da Mafia, os pormenores das guerras. Agora, claro, como houve muitas prisões de mafiosos viram-se obrigadas a dar um passo em frente. Mas a proporção é pequena", garante. Apesar disso, nos últimos anos a polícia tem vindo a prender cada vez mais mulheres mafiosas, como Concetta Scalisi, detida em 99, que controlava uma rede de tráfico de drogas e outra de extorsão a empresários e comerciantes; ou Teresa de Luca Bossa, perita em tráfico de drogas, capturada quando apanhava sol na piscina de um parque de campismo; ou ainda a chefe do clã Forcella, Erminia Giuliano, uma ruiva que pediu algum tempo aos polícias que a esperavam à porta de casa, mandou vir a cabeleireira, e quando saiu a caminho da prisão vinha de cabelo arranjado e com um pouco discreto fato de pele de leopardo fingida. A "pasta" não é boaLeoluca Bagarella, um dos mais poderosos mafiosos hoje presos, acusado de envolvimento em 300 assassínios, é também um homem silencioso. Mas há algumas semanas quebrou esse silêncio na sala de um tribunal, para protestar contra as condições de detenção dos "padrinhos". As suas palavras tiveram extraordinário impacto. "Estamos cansados de ser usados pela classe política", disse. "Estão a tentar fazer de nós parvos". O procurador nacional anti-Mafia Pierluigi Vigna não escondeu o seu nervosismo perante esta ameaça velada: "Isto é muito preocupante. Este homem nunca tinha falado antes. Ele pode estar a referir-se ao início de uma nova guerra da Mafia". Bagarella, que é também cunhado do homem que foi durante décadas o chefe máximo da Cosa Nostra, Totó Riina, anunciou que se juntava aos protestos de perto de 300 mafiosos que iniciaram há meses uma greve de fome para protestar contra o isolamento em que estão detidos. Os mafiosos recusam as "pastas" que lhes servem nas prisões, mas a opinião pública italiana está pouco comovida com a luta de homens que são autorizados a comprar fora da prisão o equivalente a 100 euros de comida por semana e a cozinhar nas suas próprias celas.As "condições desumanas de detenção" denunciadas por Bagarella têm a sua origem no artigo 41 bis da lei que suspende as condições normais de detenção para os culpados de associação mafiosa e de terrorismo. Assim, os contactos com outros detidos estão proibidos, só é autorizado um passeio por dia, as comunicações telefónicas e as visitas estão reduzidas a uma por mês. Os mafiosos falam em "tortura psicológica". Os responsáveis da luta contra a Mafia dizem que o que eles querem é "voltar ao tempo em que a prisão era um hotel de luxo em Palermo, com ostras e champagne para os prisioneiros" e em que davam as suas ordens para o exterior através dos membros da família que os iam visitar.A calculadora em vez da pistolaCom os grandes chefes que fizeram as guerras dos anos 80 atrás das grades, hoje são os seus filhos, a geração seguinte que, no exterior, controla os negócios. São jovens que navegam na net, falam línguas, e, ao contrário dos pais que muitas vezes não tinham sequer a quarta classe, frequentam a Universidade. Dedicam-se ao tráfico de drogas, mas o seu verdadeiro interesse são as concessões de obras públicas e a reciclagem do dinheiro do "pizzo", o imposto mafioso cobrado aos comerciantes. Vários filhos de chefes mafiosos fizeram os seus cursos, nos últimos anos, na Universidade de Palermo (Direito foi um dos cursos mais bem sucedidos, mas agora que já têm advogados suficientes os mafiosos estão a diversificar) e, segundo a "Time", "a caneta é hoje o objecto mais afiado que usam". Os novos padrinhos dedicam-se à gestão (para "gerir" as ajudas da União Europeia para o Sul de Itália), ao sector bancário, à engenharia ou à programação informática. Diz-se que o homem por detrás desta transformação da Mafia é ainda um dos "padrinhos" à antiga, Bernardo Provenzano, o sucessor de Totó Riina em fuga há 40 anos. O homem a quem chamavam "o Trator" pela forma como arrasava com os seus inimigos, é agora conhecido como "o Contabilista".