Monroemania
A ruiva e a platinada. A jovem inocente e a estrela desequilibrada. As revistas enchem-se com imagens dessa metamorfose. É o regresso de uma fixação: Marilyn.
Quarenta anos depois da sua morte, a 5 de Agosto de 1962 - ou terá sido no dia 4, segundo as teorias de assassinato? -, continua activo o processo de exumação do cadáver de Marilyn Monroe. Dito assim é violento, brutal; mas, afinal, também foi traumática a metamorfose da ruiva Norma Jean Baker na platinada Monroe. E é como se ainda não tivesse acabado. Se continua inexplicável a morte, é ainda mais misterioso o fascínio pelas imagens, o regresso incessante a "novas" Marilyn, inéditas, quase inéditas ou pouco vistas. Como se a metamorfose de Norma Jean Baker permanecesse activa, num processo contínuo que não encontrasse fixação. Porquê essa atracção, mórbida e fetichista? Por que, como sentiu Joyce Carol Oates em "Blonde", biografia inventada da actriz, Norma Jean foi morrendo várias vezes até ser Marilyn, e por isso o rosto dela é uma aproximação eloquente à morte? É esse o mistério Marilyn? O ritual - planetário - para marcar os 40 anos do suicídio/assassinato/acidente tem sido feito com leilões, discos, emissões televisivas especiais. Mas, sobretudo, com "descobertas". E aí estão em foco duas Marilyn: a do início, quando ainda não era ela, e a do fim, quando estava à beira do mito. Olhar para uma e para outra é medir a brutalidade da transformação - da ingénua americana ao desequilibrado mito cinematográfico.A do início é a Norma Jean fotografada por André de Dienes. Do fotógrafo de origem húngara - o primeiro a fotografar, profissionalmente, a aspirante a modelo - já se conhecia "Marilyn, mon amour", registo da deambulação pela paisagem de rochas e desertos da América com um ideal de "golden girl" de 19 anos. Era a primeira metade dos anos 40. O título da obra continha a confissão de um amor. Ao longo dos anos, o fotógrafo (que morreu em 1984) falou de uma relação entre os dois, de um noivado (poucos acreditaram) e de uma amizade que, embora intermitente, ainda era um sentimento mútuo na altura da morte da actriz. O que agora se mostra, numa edição de luxo publicada pela Taschen, são mais imagens - e a cores - dessa deambulação pela paisagem mítica de pradarias, com uma rapariga de cabelos como espigas ruivas, a correspondência entre os dois e as memórias de Dienes, escritas pouco antes da morte. Através do registo autobiográfico, Dienes faz um esboço psicológico, histórico e iconográfico do mito (e também faz o contrário: através dela, fala dele, imigrante, e do seu "sonho americano").A outra. Dienes teve oportunidade de reencontrar Marilyn (como se fosse outra entidade, algo que já fora corrompido) em 1961. E é essa - à beira de se tornar mito - a outra, que tem coberto as capas das revistas, através das imagens do filme que deixou incompleto, "Something's Got to Give". Realizado por George Cukor, chegou num momento em que a 20th Century Fox estava em curva descendente e Marilyn num limbo profissional e turbilhão pessoal. Eram os terríveis - para o sistema de estúdios - anos 60. A rodagem atribulada, pela instabilidade psicológica da actriz, marcou essas imagens com o estigma de testemunho terminal de uma era. Como tal, seria melhor mesmo que ficassem esquecidas num armazém. Até que, nos anos 80, o testemunho da decadência do maior "sex symbol" da história do cinema foi encontrado e revelou-se, afinal, o seu último momento de êxtase, triunfo. E "Something's Got to Give" o mítico filme que nunca o foi. Essas imagens já eram conhecidas: testes de guarda-roupa (Marilyn com uma silhueta escultural como já não mostrava há anos); ensaios da actriz com um cão - fazia o papel de uma mulher dada como desaparecida que regressava para encontrar o marido casado, e o animal era o primeiro a reconhecê-la; o reencontro com os filhos (sem eles saberem); um desopilante número de criada sueca (ela assim se disfarçava para se aproximar do marido), com um sentido de humor, de desafio mesmo, nas réplicas; a famosa sequência da piscina, nua (afinal, também houve felicidade por ali), e, sobretudo, a incrível fotogenia de Marilyn (fotografada pelo homem que fotografou Garbo, Greg Tolland), banhada em luz e com uma nova doçura - maternal? - encontrada. São as mais belas imagens de toda a sua carreira. Esse material em bruto - que incluía "takes", hesitações, diálogos falhados, entradas e saídas de campo - foi "limpo" e transformado numa montagem de cerca de 40 minutos de filme simulado - tipo: se existisse, seria assim -, que por estes dias passou no Canal +.Para já, Portugal vai ficar com a Marilyn "do meio". No domingo, a noite televisiva da RTP2 vai exibir, antes de "Quanto mais Quente Melhor", de Billy Wilder, o documentário "Marilyn malgrée elle", realizado por Patrik Jeudi (2002). É a Marilyn da segunda metade dos anos 50, que fugiu de Los Angeles para se refugiar em Nova Iorque, junto de Milton Green, fotógrafo, e homem discreto - outro que a amou, em silêncio? - com quem teve uma breve experiência de produção. Green "viu" também, só ele, uma outra Marilyn: urbana, despida dos sinais de estrela, a querer educar-se e diluir-se na paisagem nova-iorquina. Alguns desses retratos, inéditos, apareceram, por um encadeado de acasos, heranças e transacções, na Polónia, e esse é um dos pontos de partida do documentário. Será um filme sobre a inescapabilidade do destino e sobre o falhanço: Marilyn tentava fugir ao mito, tentava evitar as gloriosas imagens de um banho à meia-noite.