Quase Casamentos e Três Funerais

Um filme Dogma caloroso? Em todo o caso, não é o primeiro: "Mifune" (1999), de Søren Kragh-Jacobsen, também se propunha encontrar um lugar ao sol para as suas personagens. Descobriu-se, com ele, que o manifesto dos realizadores dinamarqueses por uma nova "pureza" cinematográfica não se limitava ao carácter punitivo dos filmes dos seus precursores, "A Festa", de Thomas Vinterberg, e "Os Idiotas", de Lars Von Trier.

"Italiano para Principiantes" (2000), o quinto filme Dogma e o primeiro realizado por uma mulher, Lone Sherfig, parece querer levar ainda mais longe essa proposta "desviante". Desviante, dizia-se? Nenhum dos 10 mandamentos da tábua sagrada do Dogma 95 é infringido: estão lá a câmara à mão, os cenários e as luzes naturais, o som directo. Mas é um filme que mais facilmente evocará Mike Leigh ("Segredos e Mentiras"), por exemplo, do que Lars von Trier: é uma comédia sentimental, sem a pulsão provocadora-terapia-de-choque tornada imagem de marca do Dogma. Ou "um documentário dos sentimentos", como refere a realizadora, e aí encontramos a justificação para o certificado de garantia do panfleto dogmático: Scherfig utilizou em seu favor as regras do Dogma, nomeadamente a leveza de produção, que se ajustava perfeitamente ao tom do filme. "Nunca procurei fazer algo incrível, queria apenas estar tranquilamente com a câmara e olhar com atenção para os actores", explica a realizadora.

Com duas longas-metragens no currículo - estreou-se em 1990, com "The Birthday Trip" -, aderiu ao Dogma como hipótese de "libertação" do seu trabalho, sobretudo no processo de escrita do argumento, feito a partir da improvisação com os actores. Do que resulta, curiosamente, um filme que, apesar de não parecer Dogma, está mais perto da espontaneidade e da "verdade" tão pretendidas por Von Trier. É um filme de câmara, quotidiano, seguindo, sob um olhar afectuoso (que é o mesmo que dizer: nem analítico, nem crítico), as movimentações de seis personagens até à formação de três pares amorosos. Ou, até ao derrube do cliché: os escandinavos são um povo frio, desprovido de emoções? Joga-se com outro cliché: os italianos são impulsivos e temperamentais. A contaminação terá consequências.

terapia da solidão

Em "Italiano para Principiantes", entra-se numa pequena cidade nos arredores de Copenhaga na companhia de um padre: Andreas chega para substituir o austero pároco local e é recebido pelo recepcionista do hotel, Jorgen Mortensen, com palavras em italiano. Jorgen frequenta o curso de italiano promovido pela autarquia - não é dos cursos mais populares, mas toda a gente com quem Andreas se cruza parece estar inscrito: o contágio é inevitável.

Temos, então, um grupo, como em "Os Idiotas" e "A Festa", que se reúne com um qualquer propósito catártico: não propriamente para aprender a língua, mas para expulsar solidões. Por isso, quando o novo padre pergunta à auxiliar da igreja se é casada, a resposta é: "Não, mas faço italiano." Ao contrário dos filmes de Von Trier e Vinterberg, as personagens não são "forçadas" a viver em comum, mas escolhem estar juntas - terapia da solidão. Não é, portanto, um filme de dissolução familiar, é um filme de recomposição, onde as peças do puzzle vão encaixando pouco a pouco, e depois de incessantes entradas e saídas de "cena", as personagens acabam finalmente por convergir para o mesmo enquadramento. Foto de família, coroada com um idílio veneziano de bilhete-postal.

Mas até ao "Venician holiday", haverá três funerais e outras tantas perdas, pequeno purgatório para não levar demasiado a sério: um dos enterros serve mesmo para um daqueles antídotos cómicos em que o filme é pródigo, por causa de um equívoco de cerimónias. Pode ser uma forma de se falar de "Italiano para Principiantes": um "feel good movie", mais próximo de outro tipo de cinema escandinavo, o do finlandês Aki Kaurismaki ("Nuvens Passageiras"), em versão mais ligeira e menos negra. Porque não há um real dramatismo na perda - não é pela morte dos progenitores que Olympia e Karen ficam mais sozinhas, pelo contrário, são os mortos que fazem avançar o mundo dos vivos - e tudo concorre para que o sol volte a brilhar.

É uma comédia, como se disse, mas o seu humor não releva do burlesco (apesar da desajeitada Olympia) nem de uma ironia (estamos ao nível das personagens, nunca acima delas). É preciso procurar noutro lado: na economia da "sitcom", por exemplo, onde os "gags" se sucedem com rigoroso sentido de oportunidade e de replicação, aqui com a cumplicidade de uma montagem rápida (quase não há movimentos de câmara, o plano é fixo) e a sua dinâmica de "cuts".

É um filme solar numa Dinamarca cinzenta (oops, lá vem o cliché...). E é, sobretudo, uma nova hipótese para o Dogma 95, numa altura em que este começa a dar sinais de esgotamento - como, de resto, o filme, posterior, de outra realizadora, Sma Ulykker, "Minor Mishaps", apresentado no último Festival de Berlim (que em 2001 deu o Urso de Prata a "Italiano para Principiantes"). São filmes que se apropriam do Dogma naquilo que ele tem para oferecer enquanto método de produção (a leveza, a ilusão documental da câmara ao ombro que tem contaminado um cinema europeu sedento de realismo - veja-se "Bloody Sunday"), e não como programa estético unificador. Mesmo sem o visionarismo dos primeiros filmes Dogma de Von Trier ou Vinterberg, atestam a diversidade do movimento e, quem sabe, talvez sejam o "happy end" na sua controversa existência. Entretanto, vai um bilhete para Itália?

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