Um poeta sepultado vivo
Foi assim mesmo que o Fernando acabou os seus dias: só e crucificado pelo silêncio dos seus pares, pelo desapreço das academias, pela má-vontade dos críticos, pela ignorância dos estudiosos e por outros que tais que lhe viraram as costas até na hora da morte. Meia dúzia de pessoas, se tanto, compareceram ao seu funeral no dia 19 de Junho no cemitério de São João Baptista, no Rio de Janeiro. Os jornais habitualmente tão pressurosos a ornamentar as suas páginas com homenagens ao desaparecimento de algum poeta da moda, desta vez nem uma simples nota funerária publicaram. Não bastasse tanta desconsideração, até o seu nome adulteraram quando há dias o referiram como um dos premiados da Academia Brasileira de Letras pelo seu último livro, "Signo da Serpente", editado em Lisboa pela Vega há cerca de dois anos.Entre a mordaça dos bem acomodados, sempre loucos por "graxa nos sapatos", e a morte solitária, Fernando Ferreira de Loanda preferiu a dignidade de estar só, qual um velho guerreiro, alheio aos aplausos hipócritas e aos cenáculos literários dominados por "pategos [metidos a] críticos de poesia". Um dia, não faz muito tempo, ele brindou-me com um poema, talvez dos últimos, ainda inédito e sem título, que a mão vacilante da sua velhice cinzelou. Ao contrário de um Jack London, cujas quimeras ele magistralmente cantou em verso, nesse poema (que adiante se reproduz) pressente-se em cada palavra o definhar de todas as alegrias; o toque de um "gelado ânimo" [feito] "de funda mágoa". Ele já não se sentia um descobridor do mundo, uma espécie de Ulisses, obcecado pelo mar, nascido "com os mapas", com "os itenerários na palma da [sua] mão", conforme o sentido dominante da sua poesia. Ao invés, ele via-se já enterrado pelo olvido, pelo hálito da morte: "Acabaram com os bondes/ e a paisagem dói;/ tentam dinamitar a poesia/ os poetas da paróquia,/ ardilosos, confundem/ o incauto forasteiro,/ vendem gato por lebre./ Sê surdo: o exílio/ em tua casa, entre os livros,/ é a solução; na balança,/ a amabilidade de um/ ou o impropério de outro/ só têm peso para a tua vaidade./ Que falem em vão ao vento".Realmente o mundo das letras, de língua portuguesa, acaba de perder um dos seus maiores vultos, só que de uma forma gritantemente absurda: enquanto em todos os quadrantes de língua espanhola - do México à Argentina, incluindo a Espanha - se exalta a poesia de Fernando Ferreira de Loanda, pujante de beleza estética e densidade discursiva, no Brasil, longe disso, essa poesia tem sido emparedada pelas capelinhas, quando não mesmo votada ao ostracismo. Em Portugal, por incrível que pareça, são raros os que a conhecem. Aliás, quem leu a "Ode para Bartolomeu Dias e outros poemas" (que o México editou em 1984, com prefácio do poeta espanhol Gabino-Alejandro Carriedo), e que Luis Bernardez, poeta argentino, inculca como uma produção de grandeza intocável e o seu autor um "notável escritor em qualquer latitude e em qualquer tempo"? Porventura será uma quixotada o que estou dizendo? Se assim for, então não passa de uma mentira a admiração do mundo literário latino-americano pela obra de Fernando Ferreira de Loanda. Que o diga também Jorge Ruiz Duenãs, vate mexicano, dos mais singulares e originais, que encerra o 11.º poema do seu "Guerreiro Negro" (editado pela Universidad Autonoma Metropolitana, 1996) com um verso de Fernando de Loanda: "Quando o astrolábio não mais te falar de estrelas". Enfim: inúmeros exemplos se poderiam arrolar, contudo não quero ser fastidioso. Somente importa assinalar que, enquanto as rodas literárias do Rio de Janeiro, São Paulo, Lisboa e outras desprezaram sistematicamente a presença de Fernando de Luanda, volta e meia de Buenos Aires, Montevidéu, Caracas e outras capitais lhe chegavam convites para conferências, congressos e, até, para cerimónias de aclamação de grandes nomes ou para homenagem a poetas falecidos, como sucedeu em 1999 quando o presidente do México, Ernesto Zedillo, o convidou a participar de um preito público dedicado a Jaime Sabines, que morrera um mês antes. Ademais, quem divulgou em primeira mão, além-fronteiras, os poetas brasileiros? Quem fala na "Antologia da Moderna Poesia Brasileira" (1967) e na "Antologia da Nova Poesia Brasileira" (1970), enquanto obras admiráveis que cumpriram justamente um papel ímpar de divulgação didáctica? Se o seu criador foi Fernando Ferreira de Luanda, pouquíssimas pessoas sabem que essas antologias só foram possíveis graças à paciente devoção do seu arquitecto, que fez tudo sozinho e quase arruinou a saúde com a correcção das provas gráficas, tal o rigor e a exigência de tamanha empreitada.No entanto, mais importante do que isso: quem fala hoje na "geração de 45" e na revista "Orfeu" que lhe serviu de emblema? Quem fala dessa geração que marcou a alvorada de um movimento "renovador da poesia brasileira" e singrou sob o leme de Fernando de Loanda? Quem fala dessa geração e das suas novas preferências estéticas que, segundo Haroldo Maranhão, romperam com os processos da poesia modernista de Mário de Andrade e seus companheiros? Infelizmente a falta de memória tomou conta de tudo e de todos por razões que custa a atinar! Se alguém refere os "Orfeus" (o que é muito raro), das duas uma: ou omite o nome do seu líder, ou chafurda nas águas da inverdade. Esta a razão porque Fernando Ferreira de Loanda é, segundo o que já escrevi na "Nótula biográfica" ao seu livro "Signo da Serpente, um dos casos mais sintomáticos do "assassínio" que atinge as "vozes mais puras" da poesia brasileira dos anos 40. Porquê este silêncio?Tenta a Academia Brasileira de Letras reparar agora, talvez, este mal profundo, premiando o "Signo da Serpente". Gesto simpático que aplaudo, porém peca por vir tarde. O premiado, enquanto se agarrou à fracção mágica da vida, viu o "tempo passar, perder-se frio" sem nenhuma esperança nos seus confrades. Apenas ansioso me indagava cada vez que me telefonava: "será que a guerra em Angola vai acabar depressa para eu poder voltar a Luanda, meu lar primordial?". Na verdade, só esse fiapo de sonho, derradeiro, o alumiava. O mundo nebuloso dos homens extinguia-se da sua alma esgotada. Ele cumpria a sua sina: "Cuido dos cactos, do loureiro e da goiabeira,/ respondo cartas, queimo livros e amigos./ Camões, Pessoa, Guillén e Vallejo fazem maior minha ilha./ Compromisso (...),/ só com a morte,/ o demais para o diabo". ("Poema dos Cinquenta Anos", inédito).*Historiador angolano