Timor Lorosa'e, os primeiros dias da independência
Megawatti e Clinton. A voz de Barbra Hendricks. Aquele infindável segundo em que Xanana parece ir recusar a investidura que Lu-Olo lhe oferece. O povo de Lete Foho que escala o pico do Ramelau para ali rezar toda a noite pelo futuro do novo país. Os dias sucedendo-se: o bispo que quer correr com o correspondente da Lusa; o político que só vislumbra nuvens negras no horizonte; o sonho do velho missionário de ver a UNESCO declarar a coragem dos timorenses Património da Humanidade. Primeiros dias da construção do estado de Timor-Leste.
Final da missa das 10, na igreja de Balide. Batina branca, barba branca de três dias a cobrir-lhe o rosto, João Felgueiras, 81 anos, natural de Caldas das Taipas, Guimarães, em Timor ininterruptamente desde 1971, distribui por quem encontra pagelas de Nossa Senhora de Fátima. "O que se passou em Timor é um caso único na história do mundo. Houve dor, paixão, calvário, para haver no fim Ressurreição. Mais do que as pedras, a UNESCO deve declarar a coragem dos timorenses Património da Humanidade".CNN, BBC, televisões portuguesas transmitem em directo as cerimónias de Taci-Tolo. "Sinal encorajador, foi neste mesmo lugar que o Papa esteve, em 12 de Outubro de 1989", lembra o arcebispo Roberto Martino durante a gigantesca "missa pela pátria" que precede a festa da independência e da "democracia que agora beija esta terra". No mesmíssimo lugar onde, poucos anos depois da visita papal, as forças de segurança indonésias lançariam para a morte jovens sobreviventes de Santa Cruz, o povo responde agora ao apelo de José Ramos-Horta e aplaude com calor Megawatti Sukarnoputri quando Xanana aparece a levantar-lhe o braço para a multidão. A Presidente da Indonésia acaba de subir as íngremes escadas de madeira que conduzem ao palanque onde já se encontram Kofi Annan, Jorge Sampaio, Bill Clinton, John Howard. "Ela foi ao cemitério [indonésio, situado do outro lado da rua onde fica o cemitério de Santa Cruz] homenagear os seus heróis", explicara Horta, provocando murmúrios de desaprovação entre muitos convidados e um ou outro assobio da multidão. O Prémio Nobel, acham, foi longe demais na simpatia para com o antigo ocupante. Já os ecos da poderosa e límpida voz de Barbra Hendricks ("Oh Freedom"; "We Shall Overcome") se perderam no vasto recinto até ao mar; já os antigos guerrilheiros e guerrilheiras, porte altivo, trouxeram, sob uma chuva de aplausos, a bandeira que vai subir, não tarda, no mastro; já Kofi Annan disse "Obrigado barak", em tétum, gritou de punho erguido "Viva Timor-Leste!" em português, e evocou, comovido, o mesmo momento de há 45 anos em que o seu país natal, o Gana, alcançou a independência. Francisco Guterres (nome de guerra: Lu-Olo), presidente da Assembleia Constituinte, não consegue encontrar a primeira folha do discurso que insiste em fazer e que há-de atrair sobre si o olhar fulminante de Xanana Gusmão quando anuncia a "restauração" da RDTL. "Isto não é 1143. Parece antes 1640", murmura, sarcástico, um membro da delegação portuguesa, enquanto Xanana se revolve todo por dentro contra a "insensibilidade" do porta-voz dos seus antigos companheiros de armas da Fretilin que impuseram o 28 de Novembro de 1975, dia da declaração unilateral de independência, como a data fundadora do novo estado. O instantâneo captado pelo fotógrafo da pool da ONU, mostrando a cara de pau com que Xanana responde ao sorriso aberto de Lu-Olo, dará a volta ao mundo. "No momento [dessa foto]", explica Xanana à PÚBLICA, "estava a pensar como realmente nós ainda somos frágeis no pensamento, fracos na percepção do significado das coisas. Como nos remetemos à concha, sem querer perceber que a presença da comunidade internacional constituiu ela também uma manifestação de felicidade [pela independência]. Isto magoou-me. A presidente Megawatti veio com um bom número de ministros. Foi a maior delegação estatal. Ela esteve aqui também a apoiar comícios pela autonomia. A vinda dela com tantos ministros foi para dizer: 'Estamos aqui. Estamos aqui para reconhecer '[a independência]. Então, quando as nossas próprias palavras ofendem a boa vontade das pessoas, ficamos tristes". A bandeira negra, vermelha e branca da República Democrática de Timor-Leste começa a subir no mastro. Um sentimento de comoção atravessa Carlos Ximenes Belo. O bispo de Díli e Prémio Nobel da Paz gosta de testemunhar "a real independência política" da terra onde nasceu há 54 anos. Mas sente-se ao mesmo tempo "um pouco triste por não ver o povo em massa a assistir numa praça pública ou num estádio ao içar da bandeira nacional". O tipo de festa concebido pela organização das comemorações, critica, "foi mais para estrangeiros do que propriamente para o povo". Taur Matan Ruak 46 anos, pensa "nos colegas que morreram" e que como ele ambicionaram estar "neste dia aqui", mas que não conseguiram, e ficaram pelo caminho. Taur, hoje general e comandante das Forças de Defesa de Timor-Leste (FDTL), nunca, ao longo dos 24 anos de luta, teve um momento de descrença. A sua adesão deu-se "por consciência, por desejo, por acreditar" na vitória. "Nós sabíamos o que queríamos, tínhamos um comando coeso em torno desse objectivo e contávamos com o apoio da população que estava envolvida nessa processo. O apoio internacional deu-nos também confiança na vitória". Abílio Araújo, 52 anos, antigo presidente da Fretilin, olha para a bandeira com a satisfação de quem se reivindica como a primeira pessoa que a hasteou em Díli, no tempo ainda dos indonésios. "O PNT [Partido Nacionalista de Timor, que fundou e a que preside] foi criado sob o signo da bandeira da RDTL e toda a gente sabe, em Díli, que fui eu quem a içou, em 16 de Julho de 1999. Eu tinha uma outra ideia em termos de transição. Defendi a autonomia como um processo de autodeterminação e não como estatuto final. Consta de todos os meus textos". Na tribuna do lado esquerdo, ministros e dirigentes da Fretilin não hesitam em se dirigir a ele para o abraçarem quando se ouve o hino nacional, composto por Afonso Araújo, seu irmão, já morto. Do próprio Abílio já se tinham ouvido ao longo da noite o hino das Falintil, que compôs e harmonizou, Kdadalak (canção da unidade, com letra de Borja da Costa), e Kole Lele Mai (uma recolha com Vicente Reis, Sa'he, já falecido, de um lamento Makasai da região de Baucau). Baixou de tom quase se desvanecendo a polémica criada pelas críticas a Xanana (que o aceitou como apoiante público nas presidenciais), pela sua aproximação a personalidades do poder indonésio, como a filha do ditador Suharto, e pelos negócios de import-export a que progressivamente se foi dedicando naquela região do mundo. A lendária amargura de Manuel Carrascalão, 68 anos, nem neste momento o deixa fruir a alegria da independência. "Esta bandeira não traduz Timor. Traduz Mari Alkatiri e companhia limitada. Como dom Carlos Ximenes disse, a bandeira devia levar a cruz, porque Timor é Terra de Santa Cruz. Confiávamos que a ONU fosse uma entidade neutra, mas não o foi neste caso. Vieram para cá já com o intuito de fazer ganhar a Fretilin. (...) Fui membro da Assembleia Nacional no tempo da ditadura de Salazar; fui membro da Assembleia Indonésia; mas não havia aquela ditadura que vi aqui, em que mandam um regulamento, "assina lá' e acabou. Um mês e meio antes [da independência] o Sérgio Vieira de Mello dissolveu o Conselho Nacional, quando viu que não podia fazer de nós palhaços".A três horas de distância de carro e de muitas mais a pé, mil e quinhentos camponeses de Lete-Foho rezam "pelos que morreram pela causa e pelos amigos que se solidarizaram" e dão-se o abraço da paz. O pároco Domingos Soares desafiou o povo a escalar os 3 000 metros do Ramelau ("o pico mais alto de Portugal", aprendia-se nas escolas primárias da "metrópole", até 1974) para ali comemorar a independência. A subida colectiva demorou sete horas, após o que "o padre maubere" (como lhe chamam depreciativamente alguns adversários em Díli) celebrou ao ar livre, no frio da noite, a missa da independência. Quando o sol anunciar para nascente o primeiro dia do novo tempo, ouvir-se-ão as estrofes do hino nacional enquanto um gigantesco cartaz agarrado a dezenas de balões de muitas cores se eleva sobre a montanha e desaparece no céu com a mensagem "Querida Mãe olha por esta nova nação". O governo de Mari Alkatiri não tarda a ser empossado ao ar livre, diante do povo, na marginal de Díli. Sampaio tem para oferecer ao 1º presidente eleito da ex-colónia uma Constituição com o precioso artigo 293º que conservou Timor na agenda do estado português durante todo o tempo da anexação indonésia . Xanana retribui com uma bandeira das quinas escondida durante 24 anos, em caixotes de lixo e nas copas das árvores, por um cabo timorense do contingente português no enclave do Oecússi. Timor Lorosae dá as primeiras passadas de país independente.