A guerra perpétua do Sudão
O Sudão é um país em guerra perpétua. O primeiro conflito armado entre Norte e Sul estalou nas vésperas da independência, em 1955, e durou até 1972. O pior estava por vir. A segunda e mais feroz guerra civil começou em 1983 e dura ainda hoje.O balanço destes 19 anos é eloquente. Dois milhões de mortos. Quatro milhões de deslocados e refugiados. Fome maciça. A ajuda alimentar confiscada pelos grupos armados. Bombardeamento de aldeias. Massacres indiscriminados, muitos deles para fazer deslocar populações. Guerra sem prisioneiros, de ambas as partes. Escravatura praticada por algumas milícias governamentais. É uma guerra regularmente esquecida, como se inelutavelmente se inscrevesse na paisagem sudanesa. É também uma guerra com poucas imagens. Mas, em 1998, os ecrãs das televisões foram inundados com imagens das crianças esqueléticas do Sudão. O filme, patrocinado pelo British Disaster Emergency Commitee, mostrava uma multidão a lutar pela posse de sacos de farinha lançados de aviões Hércules-130. "Seguia-se o espectáculo incómodo de crianças a morrer à fome, cobertas de moscas, com o inevitável representante das ONG passando um lenço no rosto perturbado e coberto de poeira."A operação "Lifeline Sudan", lançada em 1987 pela ONU, foi a maior operação humanitária de sempre mas deixou um rasto de inutilidade: a ajuda alimentou antes de mais os bandos armados.A guerra civil do maior país de África é geralmente apresentada como o confronto entre o Norte muçulmano e o Sul cristão e animista. É sugestivo reduzir a guerra a um conflito entre muçulmanos e cristãos. Por exemplo, para os conservadores cristãos americanos, o Sul do Sudão é uma das principais fronteiras entre o islão e a cristandade.As coisas são mais complicadas, diz ao "Monde" o especialista Roland Marchal. "Primeiro, esta guerra está também instalada em regiões - muçulmanas - do Norte e nos Montes Nuba, no Leste. As reivindicações destes insurrectos não são diferentes das dos sudaneses do Sul: o fim do monopólio do poder que se atribui uma fracção da elite originária do extremo Norte do Sudão e do Vale do Nilo; o desenvolvimento das suas regiões deixadas ao abandono há décadas; uma cidadania que deixe de excluir a maior parte da população."De resto, o conflito atravessa também o Sul, onde a par da guerra contra o Norte, etnias e bandos sulistas se guerreiam entre si.A chegada ao poder dos islamistas em Cartum, em 1989, e a introdução da lei islâmica (sharia) reforçaram a coloração religiosa do conflito. Mas as alianças, "de geometria variável", estão em permanente mutação. Os rebeldes do Sul tendem a ligar-se à oposição do Norte. Assim, aparecem agora aliados ao seu anterior arqui-inimigo, Hussan Turabi, o líder islamista de Cartum, que caiu em desgraça em 2000. O primeiro conflito Norte-Sul eclodiu meses antes da independência, em 1955, quando os partidos sulistas foram marginalizados. A guerra civil levou à intervenção dos militares na política. O general Gaafar Nimeyri tomou o poder em Cartum em 1969, com o intuito de reunificar o país. Um acordo de paz foi assinado em 1972.Mas, em 1983, um plano de divisão administrativa do Sul e o anúncio da aplicação da lei islâmica desencadearam nova guerra. O Norte comportava-se como colonizador. A guarnição militar de Bor, no Sul, recusou ser transferida para o Norte. O coronel John Garang assumiu a chefia da rebelião, criando o Movimento Popular de Libertação do Sudão/ Exército de Libertação dos Povos do Sudão (SPLA) e propondo um Estado laico e federal. Foi apoiado pela Etiópia e pela URSS. Como pano de fundo, surgia também o petróleo, cuja existência era conhecida há anos. Mas o Sul depressa viu que ele seria explorado em benefício exclusivo do Norte. Em 1989, com a conquista do poder em Cartum pelos islamistas de Hassan Turabi e do general Omar al-Bachir, a guerra subiu de violência. O Norte procurava ocupar o Sul, afastando as populações das áreas petrolíferas e das zonas mais férteis, para aí instalar colonos - a maior parte do Norte é desértica.Entretanto, a sorte da guerra virou no último ano. Os rebeldes do SPLA passaram a ter vitórias. No Sul, Garang ameaça atacar as companhias petrolíferas. No Norte, o Presidente Bachir anuncia a separação entre religião e Estado para evitar a desagregação do país. No dia 9 de Junho, os sulistas conquistam a localidade estratégica de Kapoeta. A 17, iniciam-se negociações sob o patrocínio de sete Estados vizinhos e dos Estados Unidos. Bachir apela a uma "paz no quadro de um Sudão unificado" e de "direitos iguais e uma partilha equitativa dos recursos".No dia 20 de Julho, na localidade queniana de Machakos, as duas delegações sudanesas assinam um primeiro acordo de fundo, que consagra o direito à autodeterminação do Sul, onde a "sharia" deixa de ser aplicável. Abre-se "um período de autodeterminação de seis meses", durante o qual serão criadas "estruturas constitucionais" de autonomia. Em 2008, realizar-se-á um referendo em que o Sul optará pela secessão ou pela permanência no Sudão.Não houve ainda cessar-fogo. As negociações serão retomadas em meados de Agosto. Dois factores pressionaram o acordo. Primeiro, os Estados Unidos, amigos da guerrilha sulista e agora em excelentes relações com Cartum. Depois, o petróleo.Para Cartum, a paz é a garantia de aumentar a exploração e a renda petrolífera. Mesmo partilhando-a. Por outro lado, "o interesse dos Estados Unidos reside numa região estável, sobretudo no que diz respeito à produção petrolífera", diz o analista sudanês Adlan Hardallu. O petróleo (2000 milhões de barris de reservas) tem sido explorado por companhias da Malásia, China, Qatar, Canadá e França. Doravante, entrarão em cena os americanos. A paz é ainda um horizonte longínquo. Estão por discutir "dossiers" como o cessar-fogo, a partilha de poder e, evidentemente, a distribuição da renda petrolífera. Nada garante a "sinceridade" do Norte em relação ao direito de secessão do Sul daqui a seis anos. Vizinhos poderosos como o Egipto opõem-se à divisão do Sudão. Mas também o Sul está longe de ser unanimemente separatista.Segundo Nicolas Heyson, conselheiro de Mandela e mediador das negociações sudanesas, "o que está em discussão pode ser resumido assim: até onde querem ir os sudaneses? Simples autonomia, federalismo, ou outra coisa, pode imaginar-se tudo, mesmo a possibilidade de ter duas constituições, uma no Norte, outra no Sul".A guerra sem fim aproxima-se do termo, em larga medida por exaustão, e porque mudou a paisagem geopolítica. Mas o desfecho exigirá muito tempo. O Sul do Sudão é um país devastado e coberto de minas, onde, repita-se, além dos exércitos se guerreiam clãs. As guerras dos pobres são as mais longas e cruéis.