Fala de mulher
Depois de "A Pequena Morte", editado em 1986, a romancista Hélia Correia publica outro surpreendente ciclo de poemas: "Apodera-te de Mim/ Tene Me".
O imaginário filosófico ocidental, como tem sido reconhecido, nomeadamente por Fernando Belo, que no seu livro "Filosofia e Linguagem" dedica ao tema páginas bem fundamentadas, construiu-se em torno da figura de um homem de pé que, com o seu olhar, domina o horizonte, à luz do dia. A arte da perspectiva, no Renascimento, legitima o lugar do homem no centro do universo. Derrida, "La Dissémination", demonstra como o bem (intimamente associado a pai, senhor, sol, capital) é a fonte oculta do "logos", a garantia da ordem do discurso. Ao nível da representação simbólica, o feminino não passaria de um não sexo, como acentua Luce Irigaray, "negativo, avesso, reverso, do único sexo visível e morfologicamente designável". A escrita que reivindica um espaço próprio para a expressão da feminilidade terá de assentar necessariamente numa bem diferente concatenação de metáforas. "Caia a mulher à terra, diz o coro. Que ela retorne à posição deitada da qual nunca haveria de sair./ Que ela rasteje como um mármore animado, caos de elementos, anterior aos bichos", escreve Hélia Correia num pequeno livro de poemas, "Apodera-te de Mim/Tene Me", que a Black Sun acaba de editar, ou, mais impressivamente, no que se refere à oposição de metáforas em que assenta culturalmente a identificação do conflito entre masculino e feminino, veja-se um extracto do ciclo de poemas "A Pequena Morte" que a mesma editora publicou no ano já distante de 1986: "Ei-la, estendida, atravessando a noite./ A enorme mulher cobrindo os céus,/puxando o véu da lua sobre a face! Ela é o firmamento e o seu reverso,/ a pavorosa/ sofreguidão estelar."A expressão escrita feminina tem sido permeável aos maiores equívocos. As cartas de Mariana Alcoforado que tanto exaltaram Stendhal e Rilke como a sublime expressão da alma feminina foram, tudo o indica, escritas por um homem. "Pode dizer-se que vos falo de um teatro, pois é um sítio feito para que os olhos testemunhem a morte e comuniquem a todo o corpo o seu comprazimento", escreve H.C. no poema "Em Knossos", que abre este livro, ficando desde logo sublinhado o carácter de despersonalização dramática (a máscara) que está na origem da tragédia clássica e da poesia moderna: "E, no entanto, a fala das mulheres, soprada pelas serpentes subterrâneas, ainda assusta e é levada em conta."Há um devir mulher, como há um devir negro, ou um devir animal próprio da escrita, a seguir Deleuze, que permite ultrapassar as barreiras dos sistemas de representação dominantes. Compreende-se, no entanto, a necessidade da delimitação e defesa de um território de diferença e especificidade como estratégia política de reparação das injustiças da história como se verifica, por exemplo, em Susan Sontag, "Where the Stress Falls", ao reivindicar a existência de coisas próprias das mulheres como não se pode falar em relação aos homens, porque "men, unlike women, are not a work in progress". No contexto português actual, depois de Luiza Neto Jorge e de Fátima Maldonado, é na poesia de Hélia Correia, composta apenas por dois breves ciclos de poemas, que deparamos com uma escrita que da forma mais verbalmente convincente nos permite, parafraseando Heidegger, chegar à vizinhança do ser mulher.Autora de uma já considerável e reconhecida obra no domínio da ficção, antes deste livro havia apenas publicado, também na Black Sun, em 1986, o ciclo de poemas "A Pequena Morte", em conjunto com "Esse Eterno Canto" de Jaime Rocha. Estes dois ciclos foram escritos e pensados pelos seus autores para formarem um díptico, em que as vozes dos dois poetas erguem-se a um mesmo nível de valência (e de valentia) poética, o que torna o livro um objecto singular. Entre ela e ele, jamais alguma coisa poderá ser dita, disse Antígona. Baudelaire via o homem e a mulher como dois imbecis separados por um abismo intransponível. "A Pequena Morte/ Esse Eterno Canto" é um livro que se tece precisamente a partir das duas margens desse fosso que milénios de poesia amorosa não têm chegado para franquear. Interpelação para um diálogo que não passa afinal de um duelo de morte, como o que envolve Aquiles e Penthesiléa, a quem é dedicado um belíssimo texto em "Apodera-te de Mim". Em francês "petite mort", recorde-se, comporta o sentido de desfalecimento no gozo."'Apodera-te de Mim/Tene Me' constitui uma doação em forma de livro da autoria de Hélia Coreia", como se lê em nota de edição onde se identifica um nome ausente da capa. Os leitores de poesia agradecem. Na contracapa aparece o título em latim, "Tene Me", proveniente da inscrição presente na placa em bronze, do século III-IV, de um escravo fugitivo. Repto? Ou apelo ao rapto? Na peça de teatro "O Rancor", Relógio d'Água, 2000, que apresenta afinidades temáticas com este livro de poemas, encontramos a seguinte fala de Helena: "Uma mulher gosta de ser raptada, contanto que o raptor seja por ela escolhido. (...) Espero bem que me raptem outra vez..." O poema sempre foi entendido pelos mais antigos tratados como um envio, que não tansmite outra coisa senão o próprio emissor, é o que nos transporta, o meio mais veloz jamais inventado e também o mais directo, como o amor, segundo os místicos, apaixonados, e outros arrebatados pelo absoluto, é um lugar que nos chama, o que nos transporta definitivamente para fora de nós. Como escreve Hélia Correia de Medeia, a de Cólquida, em formulação particularmente precisa, "toda ela passara para o amor".