"Helicobacter pylori" gosta dos açúcares do estômago
A bactéria "Helicobacter pylori" é de gostos requintados: só gosta da mucosa do estômago. Mesmo com preferências tão específicas, e sujeita a um ambiente tão corrosivo, infecta mais de 3000 milhões de estômagos, ou seja, mais de metade da população da Terra. É que a "Helicobacter pylori" tem um truque. Quando infecta o estômago, usa certos açúcares para se fixar às células gástricas e, depois, começam a ser produzidos outros açúcares para assinalar ao sistema imunitário a presença da bactéria. Só que ela usa esses mesmos açúcares para se fixar ainda mais à mucosa gástrica. Além de gostar só do estômago, pode dizer-se que a "Helicobacter pylori" é uma gulosa, com predilecção por determinados açúcares.Esta explicação é dada hoje na revista "Science", por uma equipa de cientistas da Suécia, Estónia, França e dos EUA, e poderá ajudar a perceber porque razão infecta o estômago de forma tão persistente. A "Helicobacter pylori" está na origem de gastrites (inflamações crónicas) e de quase todas as úlceras gástricas e tem sido associada ao cancro do estômago, um dos cinco tipos de cancros mais comuns no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Pensa-se que, nalguns casos, a infecção começa na infância e permanece ao longo de décadas. Se se estima que mais de metade da população mundial está infectada, os dados para Portugal sugerem que a taxa de prevalência é, entre os adultos, de 80 a 90 por cento.O tratamento, à base da administração de vários antibióticos em simultâneo, para tentar matar um micro-organismo que consegue resistir no ambiente corrosivo do estômago, nem sempre a mata ou impede o seu regresso, além de ser caro. Outro problema que começa a ser grave é o da resistência da bactéria aos antibióticos. Quando a "Helicobacter pylori" se entranha na mucosa gástrica, as células produzem determinadas moléculas de açúcar à superfície. Fazem-no para denunciar a presença da bactéria às células imunitárias, de forma a acabar com a infecção, que causa inflamação dos tecidos.Só que a produção dos açúcares acaba por contribuir para o aparecimento de úlceras e cancro, diz a equipa de Thomas Borén, o principal autor do artigo, da Universidade de Umeå, na Suécia. A "Helicobacter pylori" utiliza as armas do inimigo: serve-se daquelas moléculas de açúcar para aderir melhor às paredes do estômago. "A bactéria usa o sistema de defesa do organismo para os seus próprios fins hostis", refere um comunicado da "Science". Como é que a bactéria se fixa aos açúcares? Fá-lo através de proteínas de adesão (chamadas adesinas) que tem à superfície. Já se conhecia uma dessas proteínas - a BabA, que se liga a açúcares presentes em glicoproteínas existentes nas células da mucosa gástrica. A descoberta foi feita também pela equipa de Borén.Agora, foi anunciada a identificação de outra proteína de adesão na "Helicobacter pylori" - a SabA -, que permite à bactéria ligar-se ainda mais às paredes do estômago, fixando-se a outros açúcares, presentes em glicolípidos.As glicoproteínas são proteínas com açúcares e os glicolípidos são estruturas com açúcares e gorduras. Como se depreende, ambos têm cadeias de glícidos (sinónimo de hidratos de carbono ou, em linguagem corrente, açúcares).O primeiro contacto da bactéria com o estômago é feito através da BabA e dos açúcares a que se liga, chamados pelos cientistas Leb. Depois, a própria resposta imunitária induz a produção dos outros açúcares, os glicolípidos, apelidados pela equipa de sdiLex, e que são muito raros nas células saudáveis. "A própria colonização da bactéria - explica Celso Reis, investigador do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, ou Ipatimup - induz à expressão dos compostos sdiLex, que facilitam uma adesão mais íntima da bactéria às células gástricas e facilitam a persistência da infecção."Poder-se-ia pensar que o ataque das células imunitárias em força destruiria a "Helicobacter pylori". Mas não, porque ela é dona de muitos truques. Algumas das bactérias que estão pouco ligadas à mucosa afastam-se das células gástricas e, assim, conseguem evitar a destruição pelas células imunitárias. Como a inflamação cede um pouco, a bactéria aproveita o momento para voltar a unir-se de forma mais próxima à mucosa.Num comentário a este trabalho, que fez vários testes em tecidos gástricos humanos, em ratinhos e macacos, Celso Reis sublinha ainda: "Dá um passo muito importante na compreensão do processo de adesão da 'Helicobacter pylori' às células gástricas e, concretamente, na persistência da infecção." A compreensão dos mecanismos de infecção da "Helicobacter pylori", a um nível fundamental, abre as portas ao desenvolvimento de terapias e vacinas. O uso maciço de antibióticos no combate a esta infecção, além de economicamente incomportável, só agravaria a resistência aos tratamentos. Como as duas proteínas na superfície da "Helicobacter pylori" são únicas dela, os cientistas poderão, um dia, desenvolver uma vacina baseada nestas moléculas. Um obstáculo comum à eficácia das vacinas é não serem suficientemente específicas para um determinado agente patológico, pelo que a descoberta destas proteínas tem vantagens. Ainda que esta hipótese seja totalmente especulativa, tratar-se-ia de aplicar o conceito clássico de vacinas: expor uma pessoa às proteínas, que não são capazes de causar a doença, mas que levam o sistema imunitário desenvolver anticorpos contra elas. Desta forma, poderiam reconhecer e destruir o agente patológico, se este viesse a penetrar no organismo. Uma hipótese de terapia alternativa, também meramente teórica, segundo Celso Reis, seria usar compostos que se ligassem às duas proteínas de adesão na superfície da "Helicobacter pylori", impedindo-a assim de colonizar o estômago. Já que ela é gulosa, seria como saturá-la do açúcar de que tanto gosta.