O igual é sempre desigual
Na poesia de Gonçalo M. Tavares, há conceitos e teses (todo um conjunto de carapaças essencializantes), mas há sobretudo uma mundo de aceleração que é sempre anterior a qualquer metáfora: a pedra é pedra, a planta é planta, o animal é animal
Não vale a pena insistir demasiado, porque Pedro Mexia (que continua a ser um dos nossos críticos literários mais atentos e qualificados) já o disse com toda a clareza: a mais importante revelação literária em 2002 é, sem dúvida, Gonçalo M. Tavares.Em primeiro lugar, pela quantidade: publicar simultaneamente dois livros de poesia, um texto de teatro (logo levado à cena pelos Artistas Unidos) e uma obra dificilmente classificável constituída por uma sequência de aforismos e narrativas paradoxais aparentemente escritos para crianças (estou-me a referir a "O Senhor Valéry", em relação ao qual escrevi de imediato nestas páginas do Mil Folhas) é certamente inesperado para o autor que está na fase da sua "primeira obra". Em segundo lugar, pela qualidade: se a primeira reacção é de susto e reticência, isso deve-se à dificuldade que sentimos em situar e definir o tipo de texto que estamos a ler. Como escreveu certeiramente Pedro Sena-Lino, a propósito de "O Livro da Dança", "textualmente, não há género para este texto". Mas basta começarmos a ler com atenção para compreendermos que toda a complexidade consiste em aclimatar-nos à novidade absoluta com que temos aqui de nos confrontar. Em terceiro lugar, pela difícil genealogia desta poesia. Pedro Mexia tenta diversos nomes, e há alguns que me parecem óbvios (por vezes, até demasiado óbvios) e outros que tenho menos facilidade em reconhecer. É claro que Herberto Helder está presente, mas aqui a pergunta consiste em querermos saber se este Herberto Helder está presente pela continuidade que permitiria estabelecer com a poesia de Gonçalo M. Tavares (num primeiro momento, seríamos tentados a dizer que sim), se pelo modelo de ruptura que instituiu na história da poesia portuguesa contemporânea e que Gonçalo M. Tavares estaria de certo modo a repetir.Já não estou tão seguro da relação com António Franco Alexandre. Quanto a Fernando Guerreiro ou Maria Gabriela Llansol, as correspondências são mediadas pelo intertexto esmagador do grande romantismo alemão (e no caso de Cristina Victória, temos uma mediação da mediação através da própria Llansol). Pela minha parte, lembraria Nietzsche e a sua estética da força ("a violência é o amor SOLTO contra o outro, tudo com EXCESSIVA FORÇA"), mas também Alberto Caeiro e a sua crítica ao pensar ("Não pensar no amor porque o amor não se pensa. /Pensar no amor ou é: não-pensar, ou é: não-amor"). É evidente (e Mexia oportunamente sublinha-o) que Roberto Juarroz está presente na sua articulação lógica dos textos (tal como o francês Jean-Louis Parant), mas Juarroz parece demasiado esquelético face à exuberância física de Gonçalo M. Tavares. Também podemos dizer que alguma poesia contemporânea norte-americana surge aqui, embora a única referência explícita seja John Ashbery (quando eu seria levado a pensar em Ammons, por exemplo). Seria também extremamente injusto se esquecêssemos neste inventário os textos sempre admiráveis de Rui Chafes.Em relação a Herberto Helder, a grande aproximação reside no sentimento que nos assalta de que estamos a entrar a pés juntos num continente novo e desconhecido, mas que já existe inteiramente configurado e coerente. Resta-nos percorrê-lo, o que se anuncia como tarefa interminável.. Mas temos uma enorme diferença a assinalar logo de entrada: a poesia de Herberto Helder é uma poesia da aceleração textual, da velocidade interior às palavras. Como escreve Rosa Maria Martelo, num excelente texto publicado no nº 3/4 dos "Cadernos de Literatura Comparada", Granito, 2002, na poesia de Herberto Helder "é o mundo que é lento enquanto a escrita procura uma velocidade intensiva", porque "Herberto Helder consegue criar uma autêntica poética de intensificação, na qual, sob uma densíssima rede de homologias, tudo se reflecte em tudo, como se tudo relevasse da mesma energia cósmica". Por outras palavras, o mundo só é lento antes de ser escrito, mas será que temos hoje acesso a esse antes pressentido?Em Gonçalo M. Tavares, a lentidão não está antes, vem depois, é uma aquisição, uma conquista. A questão da velocidade também se coloca com inusitada persistência, mas aqui o processo é inverso: a velocidade é uma tentativa de atingir o lugar da não-velocidade que seria Deus: "O mesmo gesto, / Velocidade diferente. / Deus como SUBLIME LENTO. / A lentidão suprema. / Mas rápido também. / O grande paradoxo. E bruto." Daí que se possa recomendar que devemos "acumular possibilidades de Movimento até tornar IMPOSSÍVEL o MOVIMENTO". Mas, por outro lado, precisamos de manter o movimento sempre mais veloz aproximando-se sempre mais perto, e sempre adiadamente, do Não-Movimento. É preciso parar no instante em que estamos às portas da transparência: "Não nos prometam o transparente. /Mesmo a CARNE por dentro, no ultimo instante, deve evitar o VAZIO./ Depois de se varrer tudo vem o vento. / Substituir o vazio pelo grão de ARROZ, a semente./ Nada acabou. O cadáver prossegue."Porque o paradoxo é este: Deus apresenta-se como o lugar de Tudo (e por isso a experiência de que não há mais nada, isto é, a verdadeira experiência do Nada), mas a este Tudo falta o Outro, que é aquilo que faz que o Movimento exista. Um Deus vivo é sempre o tudo que ainda não é. Vive-se (talvez se possa dizer melhor: sobrevive-se: "a grande inteligência é sobreviver") neste ainda-não-tudo. O que em Ernst Bloch era o lugar da esperança, para Gonçalo M. Tavares é o lugar da Imaginação. Por isso, "é Preciso Fugir à Grande IMOBILIDADE, a Morte: o coração inapaixonado".Donde, o Movimento ocorre entre o Eu e o Outro, no espaço que os separa (e por isso "Deus não tem intervalos"): "Para existir Movimento é necessário Eu e o outro. /Se acabou o que não sou Eu, acabou o Eu, pois acabou o Movimento./ Deus não se move porque não há o OUTRO. / Deus ou é morto ou tem OUTRO, um OPOSTO. / Deus ou é morto ou não é TUDO." Daí que surja o Vazio, e o Vazio é o que se retrai para atrair a Imaginação: "A geometria abre a linha para deixar passar a Imaginação. / o FUTURO sai da FENDA e da FERIDA. / Do que antes foi, hoje sai Sangue. / Inundar o VAZIO: o FUTURO inunda o VAZIO. / porque todo o vazio tem por INIMIGO a imaginação. / Porque todo o vazio tem o Inimigo."A poesia de Gonçalo M. Tavares parece uma verdadeira odisseia no espaço (marcada pelo princípio de Teilhard de Chardin: "Tudo o que sobe converge"): vai da Matéria ao Invisível, vai do Osso a Deus, tendo no caminho, como estação intermediária, o Corpo (que vacila entre a Fome e o Salto, entre a população proliferante e as ligações amorosas). Mas neste percurso há o homem que pretende saber donde vem e para onde vai ("tendência enorme, exagerada, para a cabeça") e que pensa demasiado ao querer pensar a Força como Força exacta. E há a natureza que recusa todas as formas de exactidão: "O mal é Fixar a Força (direccioná-la) porque a natureza não o FAZ. / Natural é ser FORTE, isto é, avançar. / Violento é o Percurso que antecede o viajante. Antes dos pés: Sapatos; a Estrada. / A Força Exacta é violência. / A Natureza não tem, nunca teve, Forças EXACTAS. / e tudo o que o homem faz é tornar exacta a FORÇA."A grande lição de Novalis (que na segunda parte do livro é como que convocado e comentado) é sobretudo esta: "A natureza é simultaneamente um animal infinito, uma planta infinita e uma pedra infinita." Por outras palavras, inundar o homem de natureza é reduzir nele o erro de pensar e expô-lo na nudez da pedra, do animal e da planta: "A mulher tem a química dos animais e o pólen das plantas."A grande diferença em relação a Herberto Helder é que na aceleração de Herberto Helder tudo se converte em metáfora de tudo, isto é, em linguagem em chamas. Na poesia de Gonçalo M. Tavares, há conceitos e teses (todo um conjunto de carapaças essencializantes), mas há sobretudo uma mundo de aceleração que é sempre anterior a qualquer metáfora: a pedra é pedra, a planta é planta, o animal é animal.