Oasis a irmandade reconciliada

"Heathen Chemistry", quinto de originais da banda dos irmãos Gallagher. Ainda ladram? Sim, mas mais baixo. E com outra classe. É um disco como os Oasis não faziam desde há anos. Pelo gozo de tocar e compor, sem grandes expectativas sobre os seus ombros.

Grande Verão. Após alguns anos de discrição e anemia, o "rock" volta a dar cartas, e logo na sua pátria (se não de origem, pelo menos de divulgação e refinamento) - a Grã-Bretanha. As guitarras estão na moda, a atitude a tomar é formar um grupo e ser arrogante, enfrentar o mundo. Tudo isto se sintetiza no novo disco dos Oasis. Agora a adivinha: em que ano estamos? Tanto pode ser 1995, como 2002. Uma situação que reconhece que a corrente mais profunda e barulhenta da música popular ressurge a intervalos mais ou menos regulares - veja-se a actual vaga Strokes/White Stripes/Vines/Black Rebel Motorcycle Club. Assim, os Oasis, que marcaram 1995 e o auge do chamado "brit-pop" com "(What's the story) Morning Glory", voltam em boa forma em 2002 com "Heathen Chemistry". Não tem nada de novo a nível sonoro, mas recupera a atitude e a abordagem aos instrumentos e à composição. E só isso serve para os recomendar.A vida de Noel e William Gallagher (os dois filhos mais novos de Peggy, uma divorciada de origem irlandesa fixada nos arredores de Manchester) tem sido uma montanha-russa. Infância e adolescência pobres, abandono prematuro da escola, vadiagem pelas ruas menos recomendáveis, droga e bebidas. No caso de Noel, chegou mesmo ao ponto de ser "roadie" dos Inspiral Carpets... A mãe Gallagher sempre lhes disse para tentarem fazer algo das suas vidas. A história, se bem que perdendo algo na tradução, é deliciosa e demonstrativa. Afirma Noel: "A minha mãe dizia-me sempre 'God loves a tryer'. 'A tyre?', respondia eu." [trocadilho entre 'tryer', alguém que tenta, e 'tyre', pneu'] Mas também não gostava da vida de músicos, se não veja-se a letra de "Dont' look back in anger" - "Don't put your life in the hand, of a rock'n'roll band". O grupo foi lançado por Liam, e inicialmente chamava-se Rain, nome de um tema dos Beatles. Noel chegou mais tarde, e exigiu escrever todas as músicas, porque as que havia "eram péssimas". O sucesso chegou em 94, com assinatura pela Creation e o álbum "Definitely Maybe", e a consagração como "a maior banda do mundo" em 95, com "(What's the story) Morning Glory". Depois vieram os casamentos, os divórcios, a mania que eram mesmo "rock'n'roll stars" e que tinham que se comportar como tal. Mas isso foi antes, por que agora...Noel Gallagher é agora, antes de mais, um homem calmo. Com uma vida normal, condizente com os seus 35 anos. Tem uma namorada, uma filha, e uma ex-mulher, Meg Matthews, que é atacada no álbum. Agora abandonou a sua imensa mansão - Supernova Heights -, na colina de Primrose Hill, uma das zonas mais caras da capital britânica, e vive no Centro, numa casa normal, "com vizinhos". Abandonou as drogas (cocaína, pois não considera erva e "cannabis" como drogas) e o estilo de vida que acompanhava tais substâncias. Deixou de se dar com as estrelas dos tablóides, que, relembra, "fizeram na minha cozinha coisas inacreditáveis. Se dissesse quem essas pessoas são nem acreditavam". E poupou no dinheiro: "Quando estava pedrado gastava dinheiro aos pontapés. Casacos de peles, carros..." Como no famoso Rolls-Royce castanho dado por Alan McGee, dono da editora independente Creation, onde os Oasis estiveram a maior parte da sua carreira. Irónico, pois o mais velho das irmãos Gallagher nem tinha carta de condução, e o luxuoso veículo lá ficou a ganhar ferrugem. Mas não se pense que Noel relega o seu passado narcótico. "Se aparecer amanhã uma nova droga, sou o primeiro a experimentar. As drogas... fazem parte do crescimento. Tem que se tomar." Já Liam continua... a ser Liam. "Devorador" de mulheres: primeiro Patsy Kensit (ex-actriz, em "Absolute Begginers", por exemplo, e ex-mulher de Jim Kerr, dos Simple Minds), agora Nicole Appleton, uma das duas manas louras das já extintas All Saints. A outra irmã, Nathalie, é a companheira de Liam Howlett, dos Prodigy, o que, então, os torna cunhados... as voltas que o "showbizz" dá. Teve um filho de Patsy e outro de Nicole: "Grande concentração de espermatozóides aquele gajo tem", disse a propósito o vocalista de um outro grupo pop inglês.E continua a ser um "bad boy". A ameaçar jornalistas, fotógrafos, outros músicos, a rainha de Inglaterra, programas de televisão. Está bem: a gritar contra tudo que se mexa. Algumas pérolas do seu discurso: "Grande bando de cabrões. Não lhes ligo peva. Preferia dar uma boa cagadela" - sobre o Jubileu da rainha. "A única razão por que fazem vídeos a preto e branco é porque a cores parecem o bando de idiotas imberbes que são" - sobre os Strokes. Talvez a bebida tenha algo a ver com tais estados de espírito. Este comportamento de estrela implica que apenas pode sair de casa de limusina e com guarda-costas. O que o enerva ainda mais, e assim num círculo vicioso. O álbum começou a formar-se de duas formas. Primeiro, Noel escreveu os seus temas durante alguns dias sozinho (quer dizer, apenas com a namorada e longe dos restantes Oasis) num hotel em França. Enquanto isso, Liam, Andy Bell (baixo), Gem Archer (guitarra) e Alan White (bateria) alugaram um estúdio onde, com a ajuda de Johnny Marr (guitarrista e compositor dos Smiths), gravaram uma série de demos que, de acordo com Andy, "soavam como o 'Álbum Branco' [dos Beatles]". Por fim, o produto final foi gravado e misturado num estúdio em Huckingdon Farm, no coração da Inglaterra rural. Longe da confusão de Londres e dos sanguinários "media" britânicos.A produção ficou a cargo da própria banda. Sim, os Oasis mudaram de estatuto. Primeiro eram uma companhia de um só patrão (Noel), agora, com a entrada de Gem , ex-Heavy Stereo, e Andy, ex-Ride, são uma cooperativa. Todos compõem. Até Liam, o "mano pequeno". Três temas claramente inspirados em John Lennon. Noel nem quer saber como Liam arranja os seus temas: "Não sei se os inventa ou se os rouba de algum lado. Para este álbum apareceu com uma cassete com 11 temas. Oito eram horríveis e três eram bons. Tem um que menciona todos os nossos singles: 'Some people might say that you were fading away, Whatever, You say you're gonna live forever.' Péssimo."Nos últimos anos do século passado, os Oasis passaram um mau bocado. "Na altura de 'Standing on the Shoulder of Giants' estávamos demasiado atentos aos jornais. Decidimos que tínhamos que procurar o nosso lugar entre a música contemporânea - e foi aí que começaram a surgir os 'loops'. A ideia era fazer música psicadélica de cara moderna", diz Noel. Claro que não resultou. As vendas ressentiram-se, a crítica "acabou" com o grupo, a confiança foi à vida. E, pior de tudo, a fiel legião de seguidores começou a duvidar se aqueles seriam os seus Oasis. Os concertos não se ressentiram. Primeiro, porque sempre foi um dos pontos fortes da banda o velho ritual do "amplificadores no máximo e vamos a isto"; depois, porque o que os espectadores queriam era ouvir os velhos êxitos e esperaram por melhores tempos. A persistência e a fé compensaram, e aí está "Heathen Chemistry". Um álbum que se reconhece imediatamente como sendo dos Oasis. Abre com o primeiro single, "The Hindu Times", uma declaração de intenções: "Cos God give me soul in your rock'n'roll, babe". Um disco gravado muito "ao vivo", com as guitarras e os amplificadores que o grupo normalmente usa quando anda em digressão. E que, assim, se adequa aos muitos concertos que preenchem a Primavera e o Verão.Passados todos estes anos, Noel Gallagher continua a ser o homem do povo, que se safou tocando guitarra e escrevendo letras que se entranham no cidadão médio inglês. Uma prova? No recente Campeonato do Mundo de futebol, a selecção inglesa foi afastada pelo Brasil. Terminado o jogo, qual o tema escolhido pela BBC para acalmar os ânimos? "Stop crying your heart out", o actual single.

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