pós de estrela e aranhas de marte, Lda
Trinta anos depois, "Ziggy Stardust", de David Bowie, continua a render. Memórias, superlativos de qualidade, influências. E uma nova edição, remasterizada e com novos temas. "Ziggy, play guitar!". O Y falou com o produtor Ken Scott, que foi testemunha dos pós de estrela e das aranhas de Marte.
1972: o álbum "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars", de David Bowie, foi editado. Tinha sido gravado entre 2 e 15 de Novembro de 1971, no estúdio Trident, no Soho, coração de Londres, à altura uma das mais bem equipadas salas de gravação da Europa - incluindo uma novíssima mesa de mistura de 16 pistas. A produção ficara a cargo do próprio Bowie e de Ken Scott. Incluía 11 temas. Isto é o que sabemos de certeza. É que, para um disco sistematicamente apontado como um dos melhores de sempre, definidor de uma era ou iniciador de um novo estilo a nível de concepção e produção, sabe-se muito pouco do que realmente esteve por trás do projecto. Grande parte da "culpa" pertence a Bowie, claro. A saga Ziggy Stardust foi, durante alguns anos, imediatamente após o seu lançamento, objecto de grandes elucubrações, que passavam pelo seu carácter de projecto completo, de álbum conceptual, de grandes declarações de intenções sobre o mundo e estilos de vida rock. Seria a história de uma estrela de rock extraterrestre, que alcança o sucesso quando a Terra entra nos seus últimos cinco anos de existência - acaba vítima do seu êxito e comete um "rock'n'roll suicide". Claro que a realidade era mais bem prosaica.As gravações decorreram durante um curto espaço de tempo e com uma equipa reduzida: Bowie, Ken Scott, os Spiders from Mars (banda de apoio, com Mick Ronson na guitarra, Trevor Bolder no baixo e Mick Woodmansey na bateria). Esporadicamente apareceram Tony de Fries (manager de Bowie), a sua mulher Angela. Ou seja, uma liberdade quase total, que, lembra Scott, falando ao Y da sua casa na Califórnia, "na altura era já estranha, e agora seria totalmente impensável."Quanto ao "concept album", David agora é bem mais humilde nas declarações que vai fazendo. Primeiro, revela que a ideia inicial era fazer um musical para representação em palco, numa tentativa de potenciar uma carreira que até então se revelava bastante frágil e de pouco impacto. "Havia um pouco de narrativa, um ligeiro arco, e a minha intenção era completar o resto mais tarde. E nunca cheguei a fazê-lo [o musical] porque quando dei por mim estava a gravar o raio da coisa. Não havia tempo para esperar."Aliás, a mesma opinião tem Scott. "Havia três temas iniciais que formavam um conjunto, os outros surgiram e foram adaptados. Não foi feito propositadamente para ser um 'concept album'. 'It ain't easy' [escrito por Ron Davies] vinha do [álbum] 'Hunky Dory', 'Starman' foi gravado depois, porque a editora queria um single..."O legado maior deste disco passa, assim, não tanto pela componente musical, mas pelo imaginário. Pela primeira vez em grande escala um músico rock adoptava a fundo uma personagem, de forma a confundir-se com ela. Razões para isso? Muitas, e uma das mais curiosas, avançada pelo próprio Bowie, foi a timidez! "Eu era incrivelmente tímido. Era muito mais fácil manter o estilo Ziggy, dentro e fora do palco. Pareceu-me muito divertido: quem era David Bowie e quem era Ziggy Stardust? Era muito mais fácil para mim ser Ziggy." Para o produtor de "Ziggy", Bowie sempre teve uma grande capacidade de mudança: "Quando muda de personagem muda completamente." Era tanto um sinal dos tempos como um catalisador para as mudanças. Viu o que se estava a passar com a juventude britânica na altura e concentrou-se totalmente em algo que o pudesse ligar a ela. Sempre fora um actor. Conta Scott: "Por exemplo, em 'Hunky Dory' [1972] ele escreveu nos créditos: 'Por Ken Scott, com a colaboração de 'the actor' [o actor] - é isso que ele se considerava. Um actor. Ziggy era mais um papel. Ficou na pele dele durante algum tempo, depois fartou-se e livrou-se dele.""Ziggy" fica como a marca de água de um tempo - a primeira parte da década de 70. Poderia este disco ter sido feito noutra altura? Ken Scott considera que sim. "Grande parte dela [a personagem Ziggy] podia ter sido utilizada e resultar, já que os estereótipos rock'n'roll, as poses, o suicídio, já existia antes e continuou a existir e continuará a existir." A única coisa realmente nova que terá aparecido terá sido o visual: "A roupa era totalmente nova relativamente ao que se usava." A androginia passou a ser "de rigueur". Botas de saltos altos, plumas, chapéus, fatos completos de pele e cabedal. Para ambos os sexos. Os jovens perguntavam uns aos outros: "Tens baton?" e "De que sexo és?" 2002. O álbum "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars", de David Bowie, é reeditado. Edição de luxo, remasterizada. Dois CD, um com os temas originais e outro com versões alternativas, demos e temas gravados nas sessões de "Ziggy". Um extenso booklet, com a história de Ziggy, desde o "nascimento" até à "morte", e muitas fotos inéditas de Mick Rock, na altura o fotógrafo oficial de Bowie e o único a ter acesso directo aos bastidores.O som continua a ser o conhecido. A voz nasalada de Bowie, a sobreposição da guitarra eléctrica e da acústica, e os arranjos sublimes de Mick Ronson para a orquestra. Na realidade, a importância de Ronson não pode ser subestimada e um terço da autoria do álbum deveria ir para ele. Para além de líder dos Spiders from Mars, tocava as guitarras eléctricas ("logo à primeira, o David dizia-lhe o que tinha na cabeça e ele tocava logo ali", lembra Scott) e o piano. Ou seja: Bowie tinha as ideias, Mick passava-as para a prática e Scott gravava.Mas a remasterização permite reapreciar algo que falhava no original: a brilhante ocupação do silêncio, dos espaços entre a voz e os instrumentosOs pontos de maior interesse aparecem, sim, no segundo CD. Uma demo de "Ziggy Stardust" apenas com Bowie a cantar e a tocar guitarra acústica. Um já conhecido "Amsterdam", de Brel, convincentemente decadente. E "Round and Round", de Chuck Berry, a mostrar as raízes r'n'b do camaleão e o impacto do som dos 50 no glam dos 70. E "Sweet Head", um dos primeiros temas escritos sobre Ziggy mas que acabou fora da edição original. Tal como acontece coma generalidades destas edições de aniversário, fica-se com a ideia de que haverá ainda mais à espera de outra efeméride. Será assim? Ken Scott pensa que não. Com uma certa ironia, adianta: "Acho que [este disco] tem sido espremido até à última gota." Mas, num ataque de sinceridade, reconhece que algumas substâncias vogavam então pelos estúdios: "Metade das que eu gravei nem sequer me lembro... Mas não creio que haja mais material."Que importância tem realmente agora o disco? Será sobrevalorizado? Ken Scott tem a palavra: "Não sou a pessoa certa para responder a isso. Fizemos um álbum há 30 anos, gostámos de o fazer, mas fizemo-lo para nós, e tivemos grande satisfação a fazê-lo. O facto de 30 anos depois as pessoas ainda continuarem a falar dele é absolutamente inacreditável. Mas são elas que têm que o julgar." A pergunta era feita a um músico, um produtor... "O problema é que eu não sou isento, fui parte do processo. Estive envolvido de uma forma tão próxima..." Mas numa coisa é categórico: "É um grande disco, resistiu ao passar do tempo."2032. O álbum "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars", de David Bowie, é re-reeditado. David Bowie ainda está vivo. A nova edição inclui versões de "Starman" e "Lady Stardust" em fusão cibernética, com as guitarras e bateria substituídas por sons captados das profundezas do espaço. A voz de Bowie é substituída pela dos últimos mamíferos que ainda sobrevivem na Antárctida. O próprio Bowie deu a sua bênção a mais esta reavaliação do seu disco de 1972. Mas não lhe deu grande atenção: está em pleno desenvolvimento de mais uma personagem. Qual? Pela primeira vez desde a sua adolescência, está a tentar ser ele mesmo. Volta a chamar-se David Robert Jones.