Colômbia, cem anos de guerra
A guerrilha colombiana lançou uma campanha para destruir o Estado a partir de baixo, começando pelo poder local. "Demite-te ou morre", é a mensagem enviada aos presidentes de câmaras e vereadores. As FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, deram-lhes um prazo para resignarem, que terminou na quarta-feira. Numa entrevista à Reuters, um dirigente das FARC, comandante Byron, disse que o objectivo era destruir o Estado a partir das suas fundações. "Um novo poder de base tem de ser construído pelo povo. (...) Este novo poder nascente não reconhecerá as antigas instituições." As FARC, o principal grupo rebelde, têm 17 mil homens. A actual guerra civil colombiana, iniciada pela guerrilha em 1964, já fez mais de 200 mil mortos. Há uma média de 3000 raptos por ano. E dois milhões de pessoas deslocadas pela violência. Desde princípios de Junho, informa a AFP, 73 presidentes de câmara renunciaram às suas funções. Muitos mudaram-se para grandes cidades, gerindo os municípios por telefone. O Estado, impotente para os proteger, oferece-lhes asilo em bases militares. Até agora, a guerrilha partilhava a governação local. "Tirando partido da fraqueza do Estado nas regiões em que actuam, as FARC exercem desde há muito um controlo mais ou menos forte sobre a acção dos municípios e seus recursos financeiros", diz o analista colombiano Alfredo Rangel. "Mas hoje, as FARC parecem dispostas a sacrificar este sistema de cogoverno local em proveito de uma estratégia nacional visando provocar uma crise de governabilidade sem precedentes no país." Por trás desta decisão estão dois factores: o fracasso das negociações de paz com o Presidente cessante, Andrés Pastrana, e a eleição de Alvaro Uribe.A fraqueza do Governo é reforçada pela situação de quase vazio de poder. Uribe, eleito a 26 de Maio com 53 por cento dos votos, apenas toma posse a 7 de Agosto. Até lá, o governo é "invisível", diz a imprensa.Uribe foi eleito com um programa de firmeza perante a guerrilha. Tomará posse num contexto catastrófico - crise das instituições e desastre económico. Depois da vitória, apelou a uma mediação internacional para negociar com a guerrilha. Conta com o apoio da opinião pública e promete reforçar as forças armadas, até hoje incapazes de defrontar a rebelião.O exército conta com 55 mil homens. Dizem os especialistas militares que para fazer uma guerra total à rebelião precisaria de ter 400 mil e de se modernizar. Ora, o Estado não tem meios financeiros para isso. A guerrilha lançou uma "estratégia indirecta" de sabotagem em grande escala, dinamitando postes eléctricos, estradas, pontes e telecomunicações. Para lhe responder, o Estado deveria "saturar o território nacional de tropas". O que não pode.Uribe, pessimista quanto à via negocial seguida por Pastrana, foi interpretado como um candidato de guerra. Curiosamente as próprias FARC fizeram tudo para favorecer a sua vitória. "Parece que a guerrilha, muito isolada politicamente, apostou assim numa polarização acrescida, na esperança de que vastos sectores hostis a Uribe se reunam a ela", diz o sociólogo francês Daniel Pécaut. Guerrilha, paramilitares e narcotraficantes são os "três demónios" da Colômbia. As FARC, de origem comunista, foram fundadas em 1965. A segunda guerrilha sobrevivente, o ELN, Exército de Libertação Nacional, de origem castrista, um ano antes. Outros grupos dissolveram-se entretanto. Que assegura a longevidade da guerrilha colombiana?Em parte, as características nacionais da Colômbia, uma "nação por construir" e cujo Estado tem escassa presença em grande parte do território. Por outro lado, o narcotráfico. A guerrilha não tem problemas de financiamento. O tráfico de droga fornece 48 por cento dos recursos das FARC; o imposto revolucionário (na maioria sobre agricultores que cultivam coca) 36, os raptos 16 ("El País", 26 de Junho)."Daí que aqueles que vaticinaram o fim destes grupos armados com a queda da URSS tenham deparado com uma realidade muito mais complexa: a guerrilha pode sustentar-se a si mesma", escreveu a jornalista colombiana Poly Martinez. "Mas pagando um preço: pelo caminho, as FARC e o ELN perderam uma grande parte do apoio popular, embora tenham ganho em poder militar."Para complicar, há os paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC, extrema-direita), que fazem massacres atrozes nas zonas de influência da guerrilha, ao serviço das oligarquias e do latifúndio, e que dispõem de armamento mais poderoso do que o do exército. Controlam 40 por cento dos melhores terrenos da coca e da papoila. Os narcos, depois da sua campanha violenta contra o Estado nos anos 80-90, regressaram ao mero tráfico ou branqueram o dinheiro, reconvertendo-se em banqueiros e empresários. Poderá Uribe combater em três frentes, a guerrilha, os paramilitares e o narcotráfico?"Para os colombianos, a paz é algo de exótico", a guerra civil é uma constante, diz o alemão Thomas Fischer, um estudioso do país. Na primeira metade do século (a independência é em 1819), o conflito opunha federalistas e centralistas, o reformismo liberal e anticlerical ao conservadorismo autoritário e religioso. Estes conflitos convergiram na "Guerra dos Mil Dias" (1899-1902), que fez 100 mil vítimas e deu a vitória aos conservadores. Em 1948, o assassínio do liberal populista Jorge Eliécer Gaitán deu lugar a uma série de sangrentas revoltas na capital, o "Bogotazo", que fez três mil mortos e abriu uma nova guerra, "La Violenza" (1948-53), com 300 mil vítimas. No fim desta guerra, estabeleceu-se uma ditadura militar de que saiu em 1957 um acordo de alternância entre liberais e conservadores. É o regime que hoje está esgotado e que, por deixar fora do sistema terceiras forças, teve efeitos perversos. Em 1964, começavam as guerrilhas. As guerras encaixam-se umas nas outras. Os protagonistas de "La Violenza" são os herdeiros dos "Mil Dias". Os iniciadores da guerrilha formaram-se na escola de "La Violenza".Duas coisas inquietantes. Primeiro, a Colômbia é um país partido, a realidade de Bogotá nada tem a ver com o interior e zonas periféricas. Segundo, permanecem os factores que favoreceram a eclosão da guerrilha, a pobreza, o autoritarismo, a corrupção institucional, a ineficácia do sistema judicial. Se Uribe falhar, a desagregação do Estado é uma perspectiva realista. Potenciaria a crise da América Latina, já a ferver na Argentina e na Venezuela. Por que é difícil a paz? Porque, com ela, a guerrilha tem tudo a perder. E porque é duvidoso que Estado tenha a força necessária para a forçar a negociar.