Como acontece muitas vezes na obra de Jacques Rivette, é preciso algum tempo, já dentro do filme, para que "Sabe-se lá" se comece a definir e o espectador esteja em condições de vislumbrar para onde é que o cineasta o vai conduzir.
É o habitual, Rivette esconde o jogo - e num cineasta tão lúdico (ou cujo cinema possui uma vertente lúdica fundamental, na qual "Sabe-se lá" participa inteiramente) como Rivette, no limite pode-se dizer que o realizador esconde o próprio filme, porque é ele, afinal de contas, o jogo que mais lhe interessa jogar.
"Sabe-se lá" é como um "puzzle" onde Rivette guardasse para si algumas peças; ou como caixas dentro de caixas, bonecas russas dentro de bonecas russas, jogos de reflexos e de espelhos, vasos comunicantes secretos, correspondências escondidas, "filmes nos filmes", "peças de teatro nas peças de teatro", ou "livros nos livros". Ou, mais simplesmente, como o quarto de hotel das personagens interpretadas por Jeanne Balibar e Sérgio Castellitto: por fora cada um abre a sua porta e entra para o seu próprio quarto, mas lá dentro basta abrir uma outra porta para que o que eram dois quartos se transforme num só.
E por cima disto tudo, simultaneamente como traço de união e "toque de classe", uma mestria narrativa admirável capaz de exalar uma impressão de linearidade, demonstração de um prazer de "racconter" e dos prazeres do "racconto" (sob o signo de Pirandello) que se sobrepõe ao próprio tempo do filme (e fale-se com alguém acabado de sair da projecção de "Sabe-se lá": ninguém deu pelo tempo que o filme durou).
xadrez. O "ludismo" de Rivette, que pode ser em alguns casos algo de "infernal" e noutros substancialmente mais ligeiro (e sem valorizar nem hierarquizar, "Sabe-se lá" tem mais a ver com a segunda hipótese), está anunciado desde sempre, desde o primeiro momento do primeiro filme do realizador. Falamos da curta-metragem "Le Coup du Berger", um filmezinho de "bando" (dos Cahiers du Cinéma) mais do que de grupo, realizado nos anos 50. Começava, era o primeiro plano, pela imagem de um tabuleiro de xadrez. Depois, era a história de um casal, das manigâncias da mulher, e um marido que parecia a leste mas a quem no fim pertencia o xeque-mate, revelando-se o melhor "jogador", e portanto, na lógica "rivettiana", o melhor "metteur-en-scène". De certa maneira, Rivette nunca deixou de refazer insistentemente "Le Coup du Berger", ou de variar em torno dele, e é nesse eixo que "Sabe-se lá" se inscreve por inteiro.
A concepção "xadrezística" do cinema de Rivette quer dizer algumas coisas muito simples. Por exemplo, que o movimento das peças (ou das personagens) se decide pelo posicionamento das outras no tabuleiro; que esse movimento (um passo de cada vez) nunca é um fim em si mas um meio para o atingir; que há, portanto, uma estratégia por detrás de cada passo e que essa estratégia se insere numa luta de poder; e, ainda, que umas peças valem mais do que outras, enquanto umas só se podem mexer de determinada maneira em determinada duração, outras podem escolher para onde e como se movem, andar para a frente e para trás, esconder-se, etc...
É sempre assim que Rivette filma as suas personagens. Tecer uma narrativa, para ele, é encenar este tipo de tabuleiro - e daí a atmosfera misteriosa, conspirativa, porque as peças, mesmo quando julgam ser autónomas, também escondem o seu jogo, querem ganhá-lo sozinhas.
mais peripécia menos peripécia. A peça mais poderosa no xadrez é a Dama. E a Dama (Jeanne Balibar) é a peça mais poderosa do xadrez de "Sabe-se lá". Passa algum tempo na sombra (como no jogo, só se pode movimentar depois de os peões o terem feito, desimpedindo o caminho), pelo que o seu estatuto demora a revelar-se. Parece, aliás, bastante frágil ao princípio. É uma actriz francesa que, integrada numa companhia teatral romana (com cujo encenador, interpretado por Sérgio Castellitto, vive) em digressão com uma peça de Pirandello, regressa a Paris, aonde já não ia desde a ruptura com o anterior namorado. Reencontra-o, conhece a sua actual namorada, e acentua-se a sensação de que não controla coisa nenhuma - até porque Castellitto anda entretido, e (bem) acompanhado, numa biblioteca privada em busca obsessiva de uma peça inédita de Goldoni.
Mais peripécia menos peripécia, a história do filme será a do reajuste de Balibar, equivalente a um ganho de controlo e de superioridade sobre os outros e sobre as situações, rumo à grande "mise-en-scène" final onde, no palco e no meio dos "décors" da peça de Pirandello, tudo e todos encontram os seus lugares, e se suspende a mobilidade dos três pares de personagens que preenchem o filme. Tudo está bem quando acaba bem, a "moral" de "Sabe-se lá" não é menos simples, nem mais irónica, do que isso.
Balibar é o centro da construção geométrica da narrativa do filme. É através dela que as outras personagens "entram", é pela passagem dela que as outras personagens se começam a multiplicar - uma leva a outra, e a outra, e a outra -, até que o(s) círculo(s) se feche(m).
É claro que tudo isto se processa nas tonalidades misteriosas que Rivette gosta de imprimir aos seus filmes, mesmo em "trompe l'oeuil" (já não o encenar de uma conspiração, mas a simples insinuação da sua possibilidade, como muito bem se vê na história de Castellitto e da sua "demanda goldoniana"). E também é claro, se não à partida pelo menos depois de se ver o filme, que "Sabe-se lá" se joga (sem qualquer referência explícita e ainda menos piscadelas de olho cinéfilas) dentro de um terreno particularmente caro a Rivette, em curiosíssima articulação com os seus gostos e influências cinematográficas. Se há sempre, mesmo quando apenas em caricatura (como aqui), um esboço de atmosfera langiana e opressiva, "Sabe-se lá", a partir do tema do casal (neste caso, espelhado por outros casais) que segue caminhos diversos até a uma "mágica" reunião final, não deixa de evocar um filme caríssimo ao realizador, a "Viagem a Itália" de Rossellini. Transformada, aqui, numa espécie de "screwball comedy" em permanente desaceleração, pontuada por alguns grandes/pequenos números burlescos - e o duelo de "vodkas" entre Castellitto e Jacques Bonnaffé é de antologia. E este é um dos melhores, e mais divertidos, filmes que este ano se estrearam em Portugal.