Os nostálgicos do alho-porro
"Deixei de ir ao S. João quando surgiram os martelos." Álvaro Sousa escolheu castigar com a sua ausência uma noite que gradualmente foi perdendo para ele o encanto. Hoje, com 81 anos, o ex-torneiro mecânico e sócio n.º 2 do Orfeão da Foz recorda com gosto as festas de S. João em que o alho-porro era rei e senhor das ruas, transportado por mãos diligentes e galanteadoras, sempre em busca do rosto mais adequado a receber o mágico toque oloroso. Mais tarde, os martelinhos de plástico, que decerto alguma alma penada terá inventado para assombrar o ar nocturno, chegaram, viram e em poucos anos venceram. E o S. João do Porto ficou virado do avesso. "Com o alho-porro na mão, quer fosse doutor, senhora idosa ou mulher do povo, tudo era feito com outra delicadeza; os martelos trouxeram uma agressividade maior e fazem uma algazarra que não se aguenta", comenta Álvaro Sousa, lembrando-se porventura da espécie de assobio permanente que toma conta da cidade na noite de 23 para 24 de Junho e que é produto de milhares e milhares de martelinhos a baterem em uníssono na cabeça de quem passa. Mas, no seu tempo de rapaz, muito havia de diferente. O octogenário não terá vivido muitos são-joões (até porque, depois de casar, a mulher, que "não gosta de barafundas", acabou por puxá-lo para programas mais pacatos), mas os que viveu foram em grande estilo. Integrando uma "plêiade de rapaziada", Álvaro partia da Foz velha (lugar onde ainda hoje vive, desde que os seus pais lá chegaram, vindos de Amarante, convencidos de que ali era o "fim do mundo") à conquista da Baixa. Só por alturas da Rua da Restauração ou dos Clérigos é que comprava o alho. "Tudo aquilo era uma organização desorganizada", diz, chamando ao presente uma maratona de intenso andarilhar, com rapazes animados pela sensualidade do Verão a irem numa só noite a pé de Lordelo à Ribeira, dos Aliados às Fontainhas - cuja magnífica cascata era um ponto de visita obrigatória -, as largadas de balões dos jardins do Palácio e os deliciosos repastos fora-de-horas de cabrito e caldo verde. Na esquina da Rua de Santa Catarina com a de Passos Manuel, recorda Álvaro, hostes de rapazes e raparigas em alvoroço, na sua maioria estudantes, executavam a "batalha das cidreiras", esfregando na cara uns dos outros a conhecida planta aromática. "Aquilo exalava um perfume que era uma coisa maravilhosa", suspira. E, além do carácter inebriante daquele ritual de sedução, também as muralhas etárias e sociais se desfaziam de um só golpe. Ilusão pura, só explicável por um sortilégio de santo, como é óbvio. "Na noite de S. João, toda a gente se conhecia; no dia seguinte, já era outra vez tudo diferente", lembra o folião do Porto dos anos 40. Também Fernando Pino reconhece que o martelo ganhou a batalha, embora com algumas perdas para o charme da festa. Se o alho-porro era um instrumento de sedução por excelência, o martelo não é nada disso: "Ele pousa fortemente na cabeça de qualquer um, não importa se rapaz ou rapariga. Exagera-se mesmo no tamanho e até, como vi recentemente à venda, existem agora duas grandes cornetas que, apertadas, mais parecem buzinas de camião". E o docente de Antropologia, de 58 anos, interroga-se: "Será que o que interessa hoje é fazer cada vez mais barulho?". As plantas aromáticas, por seu turno, eram também pasto livre para a malandrice. Conta Fernando: "Falando com um idoso, há pouco tempo, dizia ele que por vezes os rapazes urinavam na cidreira e no alho para depois o darem a cheirar às raparigas. Eu nunca o fiz e desconhecia um descaramento desses". Apesar de secundarizado, o alho não desaparecerá, considera Pino, e o mesmo se poderá dizer, em boa verdade, do martelo. Porque, sustenta, "se ele acabasse, alguém se encarregaria de inventar um outro instrumento do género". Ambos os ícones são-joaninos estarão, por isso, condenados a coabitar, porventura num insidioso braço-de-ferro a ver quem melhor cativa o folião. Tanto um como outro levados na maré que submerge o Porto num gigantesco desvario. E conclui o especialista: "O S. João é uma festa feita pelo povo e para o povo e está condenada ao sucesso. Mesmo aquele que pretenda ser apenas um espectador acaba por se envolver em algo que ultrapassa as suas forças. Esta noite é talvez a única que não precisaria de publicidade para trazer as pessoas para a rua".