"Sentei-me, olhei em volta e fiquei ali a tentar respirar"
O alpinista João Garcia faz o relato emocionante de como atingiu o cume do Evereste num livro de aventuras, um género pouco comum em Portugal. Subiu onde nunca um português havia ido antes, só que essa proeza ficou ensombrada pelas mazelas na alma, com a morte do companheiro de escalada, e no corpo, com amputações nos dedos e no nariz.
Quando chegou ao cume do Evereste, no final da tarde de 18 de Maio de 1999, João Garcia não tinha a certeza de lá estar. Andou a vaguear umas duas horas, naquela lentidão ofegante de quem está a 8850 metros, sem oxigénio que chegue para o cérebro, em busca da maior elevação. Mas quando se está mais perto do céu do que da Terra entra-se numa realidade difícil de imaginar para os que sempre estiveram cá em baixo, porque é como se se estivesse fora do planeta. O cansaço faz pesar os pés, tudo é muito lento e o pensamento torna-se tão confuso, pela falta de oxigénio no cérebro, que é impossível apreciar, lá de cima, a Terra. No que se pensa? Em nada, procura-se respirar, tão-só. O tempo estava quase perfeito. O sol estava forte, o céu azul e corria só algum vento."Tinha chegado ao ponto mais alto do mundo. Sentei-me, olhei em volta e fiquei ali, ofegante, a tentar respirar", conta João Garcia, de 34 anos, no livro "A Mais Alta Solidão: O Primeiro Português no Cume do Evereste", escrito com a colaboração da jornalista Berta Rodrigues. "E aproveitei, sobretudo, para me sentar, para tentar recuperar a respiração, olhando para a frente, sem ver nada. Era como se não tivesse pulmões. Inspirava profundamente, uma após outra vez, e pura e simplesmente não conseguia repor a respiração como se estivesse cá em baixo. É uma sensação de cansaço esmagadora, que nos domina por completo. Ali estava eu, tão perto do Céu como se pode estar com os pés na Terra, e só pensava em respirar. Não tive nenhum pensamento profundo, tipo: 'Foi para isto que vivi toda a vida.' Nada."O que deixou João Garcia confuso foi, também, um tripé de alumínio, deixado por uma expedição chinesa, que ele achava que devia lá estar e não estava. "Na minha cabeça, o facto de não encontrar o tripé misturava-se com a dúvida se estaria de facto no cume. E como há uma série de outras elevações, pus-me a percorrê-las, para ter a certeza. O problema é que o tripé entretanto já foi retirado. Parece que toda a gente sabia disso, menos eu..."Depois, convence-se de que chegou ao cume. Porque é o mais sujo. "Ironia amarga, não é? O ponto mais alto, mais remoto do mundo, é identificável por estar sujo..." Estava lá sozinho, porque o amigo e companheiro de escalada, o belga Pascal Debrouwer, ainda ia a subir.Foi nessa altura que João Garcia se sentou, com o pensamento vazio, e respirou. Já houve alpinistas que não conseguiram levantar-se e deixaram-se ficar, para sempre. Ele conseguiu, mas demorou-se demais lá em cima, naquela confusão, por isso quando começa a descer já é tarde. "Viro as costas sem me lembrar que nem sequer tirei uma foto."Mas no início da descida, encontra-se com o amigo, que vai a subir. "Não sei bem porquê, o Pascal convence-me a voltar com ele ao cume para tirarmos a foto. (...) Convenceu-me a continuar àquela altitude, contra todas as regras do bom senso. Quando o Pascal me fala da foto, lembro-me de que me esqueci completamente de tirar fotos e penso que era importante ter uma imagem do cume. Para o bem da nossa agência." Eram sócios na empresa de "trekking" Montagnes du Monde. E vão os dois para o cume, João Garcia pela segunda vez. Talvez tudo tivesse sido diferente se trouxesse o amigo para baixo, mas o passado não pode mudar-se. Tiraram as fotos, ele com a bandeira de Portugal. Mas acabou por passar mais de três horas acima dos 8800 metros, a zona da morte, onde os seres humanos não podem viver.O regresso à Terra era urgente. Era tarde demais. O Sol começava a pôr-se e o tempo mudou, estava muito vento e frio. "Estava, claro, mais cansado. A cada momento a progressão é mais penosa. Precisava de respirar oito, nove, dez vezes a cada passo. E isto a descer." As dificuldades na descida começaram então, porque, na subida, cometeram o erro de se despojarem de alguns equipamentos. Como João Garcia sublinha, o assalto à montanha não finda no cume; é preciso descê-la também são e salvo - "e sentar-me à volta de uma mesa, com os amigos, e recordar como foi".Um dos erros foi terem posto as lanternas de ambos na mochila de João Garcia, quando o dia aclarou, para aliviar a pressão na cabeça, sempre a doer a grande altitude. O outro erro foi ter abandonado a mochila, por achar que tudo corria bem e poderia recuperá-la na descida, com as lanternas. Por isso, ao descerem já de noite, não vêem o caminho. "Não me lembro bem nem onde, mas sei que acabei por perder uma luva. O que só agravou as minhas lesões."Ele ia à frente e esperava por Pascal Debrouwer, que demorava. "Devia estar aflito." Numa dessas esperas adormeceu, só que o colega acabou por acordá-lo e lá seguiram caminho. "Esta cena repete-se várias vezes, suponho eu. Até que há uma vez em que acordo e não vejo o Pascal." Invadiu-o um turbilhão de emoções: "O meu primeiro sentimento foi: 'Ele deixou-me aqui!' E essa raiva dá-me forças para descer. Nestas alturas alimentamo-nos dos sentimentos mais primários, da raiva, do ódio, sei lá. Nem queria pôr a hipótese de ele não estar mais para baixo, embora, lá no fundo, me assaltasse essa dúvida."Os medos invadiram-no. "Acabo por perder um pouco o controlo", diz, depois de, no meio da montanha, abandonado a si próprio, cansado, ter percebido que a água do cantil estava congelada. "Adormeço, bloqueio, tenho receio de não ter visibilidade se desço, de não encontrar o caminho, tenho medo de errar, descer por um sítio errado e cair num beco sem saída." Opta então por dormir ao relento, enroscado.Não é por acaso que o jornalista Miguel Sousa Tavares chama à jornada de João Garcia, no prefácio do livro, a mais alta solidão, de um homem que caminha em direcção ao absoluto ou ao vazio. Além disso, a revelação do que vai na alma de uma pessoa que se coloca no limite de tudo, e das dúvidas e fraquezas que sente, faz com que fiquemos presos às páginas.Rumo à Terra, ficou a saber que o amigo nunca mais regressará. Percebe-se que, mesmo sem culpa do que sucedeu ao amigo, João Garcia sente remorsos. Faz um relato sofrido: "Foi como se tivesse levado uma martelada. Acho que estive perto de entrar em estado de choque, naquele momento em que fui forçado a admitir que o Pascal, provavelmente, não estava à minha frente." Pensou ainda: "Não pude deixar de sentir que tinha abandonado o Pascal. Afinal, não era ele que me tinha abandonado a mim." Tentou procurá-lo, subir, mas estava nos limites. "Com grande mágoa, acabei por ter desistir do Pascal."Mas por que já arriscava a vida a subir a montanhas e - depois disto tudo e de ter estado 92 dias num hospital a despedir-se das pontas dos dedos e a reconstruir o nariz, por terem congelado - por que continua a fazê-lo? Para superar os seus limites, ultrapassar-se - diz - ou, somente, porque sim. Tanto assim é, que há poucas semanas, chegou do Alasca, onde se aventurou pelos 6194 metros do monte McKinley. O certo é que o interesse pelo alpinismo surgiu aos 16 anos. Começou por escalar os caboucos das vivendas da rua dele em Lisboa e acabou, à terceira tentativa de assalto ao Evereste, sem auxílio de oxigénio artificial, no topo do mundo.