Bairro da Bela Vista revoltado com actuação policial
"Vi o Toni a abrir as mãos. Conforme fez isso, o polícia disparou uma vez e depois o Toni vai a cair p'ra cima dele e leva o segundo tiro." Sílvia Julião, auxiliar num lar de idosos, estava na varanda a apanhar roupa pendurada, cerca das 19h00 de quinta-feira, 20 de Junho, quando dos acontecimentos que trouxeram de novo o Bairro da Bela Vista, em Setúbal, para as páginas dos jornais."Eu ouvira dois disparos e na altura pensei que fosse um carro a bater. Espreitei e vi o Toni, que estava nas escadas do bar do ACM [Associação Cristã da Mocidade] a ir ter com os polícias. Nessa altura, já um primeiro polícia disparara dois tiros no Zé Manel [um negro que se envolvera numa rixa com um branco]", conta Sílvia."O segundo polícia, que estava dentro do carro, saiu de lá e disse: "Para aí!" Eu vi o Toni abrir as mãos e levar dois tiros. Da segunda vez, rodopiou e caiu, os óculos na cabeça..." Sílvia Julião e a mãe desceram da varanda e foram para junto de "Swat", alcunha de Toni, aliás Manuel António Tavares Pereira, 24 anos, operário da construção civil. "Acabou de morrer ali ao pé de mim, esticou-se ali, os olhos semi-abertos... todo roxo..." E as balas? "As balas eram de borracha, mas a distância era tão curta entre ele e o polícia que o rebentaram todo..." O Toni estava armado? "Não, o Zé Manel tinha um canivete, o Toni não tinha nada..."Ontem, no Bairro da Bela Vista, a situação era de total calma entre a população e a polícia, depois de um princípio de noite de quinta-feira muito tenso. Em frente à esquadra, que no dia anterior fora apedrejada por jovens e populares revoltados com a morte de Toni, permanecia apenas o agente da praxe. Uma janela mantinha-se com os vidros partidos mas era tudo.Um pouco pela zona do bairro que fora fustigada no dia anterior pelas forças policiais, havia marcas de balas reais, cápsulas no chão e balas de borracha pequeninas que muitos, brancos e negros coleccionavam. "Quer uma?", perguntava um morador, exibindo uma pequena e sinistra bolinha preta - "A partir de ontem fiquei a saber que vale uma vida." Ao lado, um negro mostrava a cápsula do que afirmava ser uma bala de 38 mm: "Isto aqui é de uma 38. O que é uma 38? Rebenta um gajo todo..."A forma como as forças policiais actuaram pelo bairro abaixo, depois de os agentes locais, encurralados pela população, terem pedido reforços, é alvo de críticas um pouco por todo o lado, de negros a brancos. "Vinha um chefe à frente, com um cão, e dizia: 'Disparem para ali' e eles disparavam", conta uma moradora. "Eu vi toda a gente a correr e a gritar 'Fujam, que eles estão a disparar'. Não fiquei a ver, lógico", conta uma jovem, que confirma que mais do que uma pessoa ficou ferida. "O meu padrinho ia para comprar tabaco e apontaram-lhe uma arma, até se mijou todo, coitado", conta uma mulher.Mais adiante, em frente às instalações da ACM, onde tudo se passara, uma fita vermelha e branca isolava o lugar da morte de Toni, ainda com manchas de sangue e vidros de garrafa no chão. Os populares construíram ali uma espécie de altar em madeira, onde colocaram a fotocópia de uma foto a cores de Toni ampliada. O "Swat" surge na fotografia impecavelmente vestido, fato preto, junto a uma árvore. Ao lado, há duas velas, muitos ramos de flores e cartazes onde se lia: "Bófias criminosos de duas caras", "Chuati, nunca te esqueceremos, irmão sempre", "Polícias cães do Estado à solta na Bela Vista", "Somos bonecos de treino dos polícias", "A violência vestida de azul" ou "Africanos alvo em movimento dos porcos de azul".Toni pertencia ao Centro Cultural Africano, onde durante cinco anos foi dançarino de danças africanas e há dois anos trabalhava como voluntário junto de "crianças em risco". Carla Marie Jeanne, responsável do centro há sete anos, recorda o Toni como um jovem "muito alegre e meigo", que teve o seu período de rebeldia na adolescência mas sossegara aos 18 anos, a idade em que a maioria dos jovens delinquentes sabem que podem finalmente ser presos."O Toni chamava-me "mama". A primeira coisa que fazia quando chegava era abrir os braços e dizer "mama"!, recorda Carla, que não vai cancelar o projecto "Viver a Diversidade", um projecto levado a cabo por Toni e que vai ser apresentado a partir de terça-feira na Praça do Bocage.Na sede do Centro Cultural Africano, há uma vela acesa junto a um cartaz onde se lê "Porque morreu Toni?" e há fotos de Toni a dançar junto aos dizeres: "Toni dança com os anjos até sempre".O funeral de Manuel António Tavares Pereira realiza-se hoje em Setúbal e dificilmente passará desapercebido, uma vez que, à hora do fecho desta edição, o Centro Cultural Africano da Bela Vista se preparava para "encher Setúbal com fotos do Toni".