Homem Aranha, o "herói que podias ser tu"
Há quase 40 anos - comemoram-se em Agosto - nascia Spiderman, mais um super-herói da forja de Stan Lee. Dispõe das faculdades das aranhas mas manteve-se sempre uma criatura frágil, insegura e tímida. São todas essas qualidades, transpostas para um filme com estreia marcada para sexta-feira, que explicam o seu êxito duradouro na BD.
Um adolescente é picado por uma aranha radioactiva durante uma experiência laboratorial e adquire os poderes deste aracnídeo. Pode imaginar-se situação mais improvável do que esta? Talvez sim, talvez não, mas foi assim mesmo que teve início, em 1962, a história de Spider-Man, Homem Aranha na tradução portuguesa.Os grandes acontecimentos que viriam a marcar a década de 60 do século passado tinham sido de certo modo anunciados por um evento emblemático - a eleição de John Kennedy para presidente dos Estados Unidos, no final de 1960. Pode dizer-se que tem início nesse momento um novo ciclo da história do país e do mundo. O mesmo acontecia no universo dos quadradinhos norte-americanos. Prisioneiros de imperativos nacionais que os "obrigaram" a defender a liberdade e a democracia em todas as latitudes nas décadas anteriores, os "comics" aspiravam a novas fronteiras de aventura, longe da mobilização contra o eixo Tóquio-Berlim na Segunda Guerra Mundial ou do combate ao comunismo ascendente na península da Coreia.É neste contexto que entra em cena o argumentista Stan Lee, pai-fundador da editora norte-americana Marvel Comics. Possivelmente sem tomar plena consciência do significado maior dos seus actos, vai impulsionar um movimento de relançamento dos heróis com super-poderes surgidos nas décadas anteriores. Nessa altura, alguns continuam bem vivos e de boa saúde (Super-Homem, Batman). Outros são ressuscitados (Capitão América ou Submariner), sofrem adaptações (Daredevil) ou inspiram-se em personagens pré-existentes (Hulk e The Thing). E há ainda outros que fazem a sua primeira aparição, como Spiderman. Mas têm todos em comum a afirmação de uma individualidade psicológica própria, em permanente diálogo com evidentes dificuldades de inserção social - ou não fossem detentores de uma identidade dupla em equilíbrio precário.O aparecimento do Homem Aranha é quase acidental. Naquele ano, a Marvel ainda não é o império editorial que hoje se conhece. Uma mão-cheia de "comic books" vai alimentando o mercado, onde pontuam as séries fantásticas. "Amazing Adult Fantasy" é uma dessas edições que procuram encontrar um lugar ao sol no competitivo mercado editorial norte-americano do género. As dificuldades são de monta, pois a publicação privilegia histórias curtas e intimistas, longe da espectacularidade das narrativas de monstros tão em voga. Para mais, a maioria dos leitores são miúdos que ainda não chegaram aos 10 anos e, por isso, é sem surpresas que os editores decidem suspender o projecto no número 15, confrontados com fracos resultados de vendas. Sem nada a perder, o argumentista Stan Lee e o desenhador Steve Ditko decidem então fazer uma gracinha, criando uma história em forma de paródia aos super-heróis. Um estudante liceal chamado Peter Parker é picado por um aracnídeo radioactivo que lhe transmite os seus poderes. Apresentado pelo "marketing" como "o herói que podias ser tu", o jovem é uma criatura frágil e insegura, atormentado com pesadas obrigações familiares e vivendo no terror de ser rejeitado. Ao contrário do que se poderia imaginar, Parker não toma imediatamente consciência dos seus poderes nem vai canalizá-los para a luta contra o crime: o seu primeiro desejo é participar no Ed Sullivan Show e ficar célebre, confeccionando para o efeito um fato especial com o qual se lança no "show business" sob o nome de Spider-Man...Mas tudo mudará rapidamente na sua vida. Uma certa noite, ao regressar a casa, assiste à perseguição policial de um homem mas não mexe um dedo para o apanhar. Ao chegar a casa fica a saber que o seu tio Ben foi assassinado por um assaltante e ao detê-lo mais tarde, sob a identidade de Homem Aranha, descobre que ele era o mesmo homem que deixara escapar naquela noite.Quando foi desafiado pelo seu editor, no princípio dos anos 60, para criar uma série de resposta ao êxito da Justice League (DC Comics, na altura National Comics), Stan Lee estava farto do que fazia e decidido a mudar de vida. Mas teve o bom senso de discutir o assunto com a mulher, como recordou em 1995 na revista "Scarce":"A sua resposta foi a seguinte: 'Se o teu editor quer tanto que escrevas uma série com um grupo de super-heróis porque não o fazes, mas à tua maneira e não à dele? O pior que te pode acontecer é seres despedido o que, de qualquer modo, tu já tencionavas fazer'".O resultado foi o nascimento dos Fantastic Four (Novembro de 1961, desenho de Jack Kirby) que assinalam o início de um fabuloso ciclo de relançamento e renovação dos super-heróis. A ironia desta situação repete-se com Spider-Man. Ninguém acreditava nem um bocadinho no herói-aranha. O próprio Lee contaria anos mais tarde que, ao apresentar o projecto, o editor Martin Goodman lhe respondera que as pessoas não gostavam de aranhas e que um personagem inspirado nessa criatura não teria o menor sucesso. A resposta indirecta a este vaticínio veio alguns meses mais tarde, quando as vendas da última edição de "Amazing Fantasy" (tinha perdido, entretanto, a palavra "Adult" no título) foram conhecidas. O número vendeu uma surpreendente quantidade de exemplares e a presença de Spider-Man na capa não foi de todo alheia a essa inversão de resultados. Stan Lee soube retirar logo ilações, lançando um novo "comic book" a que deu o título de "The Amazing Spider-Man".A aposta deu frutos imediatos e no início de 1963 o herói já era o mais popular do catálogo Marvel. Dir-se-ia que Lee tinha um pendor natural para transformar em ouro tudo o que tocava. Com efeito, depois dos Fantastic Four outros super-heróis por ele concebidos foram ganhando rapidamente um lugar ao sol, beneficiando da sede inesgotável dos leitores por este tipo de produtos. Só no ano de 1962 nasceram o incrível Hulk, Ant-Man e o poderoso Thor. E mais viriam nos anos seguintes, como Iron Man, X-Men (ambos em 1963), Daredevil (1964), ou The Silver Surfer (1966). Todos foram espectaculares sucessos.O que faz o sucesso particular de Spider-Man neste exército de heróis ganhadores? Ao contrário dos demais super-heróis, o Homem Aranha apresenta-se desde o princípio como uma criatura torturada e insegura, movimentando-se num meio hostil povoado por inimigos poderosos. Afirmou Stan Lee:"Psicologicamente, ele tem os mesmos problemas dos seus leitores. Possivelmente, é essa a razão por que ele é um dos personagens mais populares dos 'comic books'".Mas há mais. Por detrás do corajoso e audacioso Spider-Man esconde-se o jovem estudante liceal Peter Parker. Este é um miúdo ridicularizado pelos desportistas da classe e ignorado pelas raparigas, visto como um "chato" pelos camaradas de escola. Mas é precisamente o contrário, pois as preocupações e centros de interesse de Parker estão muito para além do pequeno universo escolar. Por um lado, desde que o tio foi assassinado, ele é o único sustento da tia May, cuja saúde é frágil. Por outro, tem de gerir todos os problemas associados à sua dupla personalidade - e em especial enfrentar uma opinião pública que lhe é profundamente hostil e vê nele quase um criminoso. Ora, o Homem Aranha é um herói que enfrenta e elimina as ameaças de uma sociedade que o não compreende - é o caso de Doctor Octopus, The Sandman, Electro, The Green Goblin e outras criaturas monstruosas. Para cúmulo, enfrenta a hostilidade total do jornal "Daily Bugle" e do seu proprietário, para o qual Peter Parker trabalha como repórter fotográfico.Personagens complexos como este, permanentemente confrontados com os problemas da vida real, calam fundo no coração do público juvenil que consome "comics" - a sua principal característica é serem humanos, talvez mesmo demasiado humanos. E a verdade é que o sucesso da série demonstra que a dupla Lee-Ditko soube habilmente agarrar e desenvolver os mecanismos contraditórios de integração e exclusão social, característicos do universo dos adolescentes.A partir de 1967 os quadradinhos começaram a ser pequenos para a popularidade de Spider-Man. Surgiu então a primeira série de desenhos animados, realizados nos estúdios da Hannah-Barbera. Em 1972 o herói passou a viver as suas aventuras numa terceira publicação, "Marvel Team-Up" (a segunda, "Marvel Tales", começara a reeditar histórias em 1966), onde contracenava com outros personagens da galeria-Marvel. E uma quarta publicação é publicada a partir de 1976 ("Peter Parker the Spectacular Spider-Man"). A televisão atravessa-se no caminho do herói em 1978, com a exibição de uma série, e em 1985 "Marvel Team-Up" converte-se em "Web of Spider-Man".Apesar de todas estas iniciativas editoriais, no final da década de 80 a série entrara numa fase de estagnação, sobretudo desde que Peter Parker se casara com a rutilante Mary Jane Watson. Tudo aconselhava uma renovação, que se começou a sentir logo em 1988 quando Todd McFarlane, um jovem e talentoso artista, pegou na banda desenhada. O personagem torna-se mais ágil e a sua teia transforma-se num elemento gráfico de primeira linha. E as histórias, graças a David Michelinie, ganham um fôlego até então desconhecido. "Amazing Spider-Man" torna-se em poucos meses o título-estrela da Marvel.McFarlane não é inteiramente senhor do personagem, de acordo com uma lógica de criação e produção compartimentadas, dominante nos Estados Unidos. No entanto, os resultados obtidos dão-lhe alguma margem de manobra e quando começa a tornar-se evidente o esgotamento pessoal do criador na fórmula, a Marvel propõe-lhe a realização de uma publicação mensal ("Spider-Man") e carta branca para desenvolver o projecto como bem entender. 1990 é o ano de todas as viragens, surgindo 15 números de sonho, onde estão presentes todos os elementos maiores do universo do autor e do herói - preferência pelos ambientes urbanos, exploração da dualidade riqueza-pobreza no espaço social, predilecção pelos monstros e pelo papel das crianças, hábil articulação entre horror e humor. Tudo isto saberá a pouco, pois em 1991 McFarlane abandona a Marvel para criar a sua própria empresa, a já mítica Image, na companhia de Rob Liefeld, Marc Silvestri, Jim Lee, Whilce Portacio, Jim Valentino e Erik Larsen. E, sobretudo, dar um sopro de vida a Spawn, o super-herói marcante da década passada.Spider-Man, porém, continua o seu percurso, que desemboca agora no cinema. O primeiro filme chega a Portugal já como um campeão de bilheteira - saltou rapidamente para o top25 dos mais rentáveis de todos os tempos.