A futebolização do mundo
Se o mundo é uma bola, então só pode ser uma bola de futebol. Se dúvidas há sobre este facto, podemos tirá-las durante este mês, onde jornais, rádios e televisões só falarão do futebol, das suas estrelas, das suas jogadas e de tudo aquilo que paralelamente condiciona o jogo. Tudo o mais é secundarizado, desde as tensões internacionais, até às novas políticas do Governo do país, passando pelo nosso quotidiano que entretanto deixou de se preocupar com as taxas do seu endividamento e passou a centrar a atenção nos caprichos de uma bola. Os mais críticos do jogo, aqueles que dizem que não gostam, nem percebem porque se gosta, argumentam que o futebol é apenas um jogo em que uma bola é pontapeada de um lado para o outro, e a única transcendência que aí se encontra é a da alienação que o jogo provoca em quem o consome. De facto, o futebol é um jogo simples na sua concepção e prática, permitindo que seja jogado informalmente pelas crianças em qualquer espaço e tempo com regras arranjadas segundo as conveniências, ou então praticado por jogadores de grande recorte técnico, no mais mítico dos estádios, segundo um código de regras coercivamente imposto. O argumento da alienação também parece evidente, pois enquanto as atenções estão centradas em quem ganha e perde, não estão vigilantes relativamente à actuação dos políticos e aos problemas sociais.Contudo, quem gosta do "beautiful game", quem o vê e comenta, apercebe-se que o futebol, sendo simples na sua essência, é mais do que um mero jogo, adquirindo múltiplos significados. No seu livro "A Tribo do Futebol", Desmond Morris constrói uma interpretação antropológica do jogo como se este fosse uma actividade tribal praticada pelas sociedades modernas. Cada equipa é como uma pequena tribo, com território definido, chefes, feiticeiros, heróis e rituais. Em cada jogo são entoados ribombantes cânticos guerreiros, são exibidas vistosas indumentárias, manifestam-se superstições primitivas e vêem-se misteriosos costumes. E é assim que, com pequenas variações de intensidade e estilo, o futebol praticado em Inglaterra, nos Camarões, na Argentina ou em Portugal, e agora particularmente na Coreia ou Japão, apresenta em comum várias facetas que permitem que o perspectivemos como algo mais do que um simples processo de alienação.O futebol é simultaneamente o reflexo e o produto da sociedade que o produz. Segundo o antropólogo Christian Bromberger, o futebol condensa em si o "ethos" do moderno mundo industrial, nomeadamente através das seguintes características: divisão de tarefas e trabalho de equipa que envolve todos os jogadores; a igualdade teórica de possibilidades de vitória; a competição constante para se vencer tudo e todos; os castigos ou recompensas correspondentes às "performances" competitivas; o "status" incerto inerente a quem ganha e a quem perde. Para Norbert Elias, todas estas características se combinam num precário equilíbrio entre tensão e excitação, permitindo ao espectador viver um conjunto de poderosos sentimentos e assumir comportamentos de excepção. E é por isso que, como refere Arthur Hopcraft, "o que acontece nos campos de futebol é importante, importância esta que não é do género das questões relacionadas com a subsistência, mas sim com aquilo que a poesia faz a certas pessoas e o álcool a outras; mexe com a nossa personalidade".Os campeonatos do mundo de futebol sempre se constituíram como momentos de excepção. Cada jogo é uma batalha em que simbolicamente se jogam identidades e dignidades dos jogadores e dos adeptos. Em 1930 foi precisamente isso que aconteceu na final entre o Uruguai e a Argentina. No mundial de 1934 em Itália, Mussolini teve um palco privilegiado para fazer exibição do seu fascismo. Em 1938, em França, o virtuosismo da Checoslováquia foi derrotado pelos "arranjos" da Itália do Duce. Em 1950, no Brasil, em tons kafkianos, no cenário carnavalesco do Maracanã, a selecção brasileira foi derrotada na final pelo Uruguai, deixando o país mergulhado numa profunda tristeza. Quatro anos depois, na Suíça, o mundial seria ganho por uma Alemanha que ainda dez anos atrás lutava contra o mundo. A partir do mundial da Suécia, em 1958, inicia-se o domínio duma deslumbrante selecção brasileira, que ganhou não só aí, mas também no Chile em 1962, e ainda em 1970, no México. Entretanto, em 1966 na Inglaterra, Portugal teve um desempenho memorável que serviu para consolidar definitivamente o futebol como um dos "f" da tríade da nossa identidade, juntamente com Fátima e o fado. Em 1974, no mundial da República Federal da Alemanha, ganho pelo país anfitrião, jogou-se sob a tensão do atentado palestiniano que dois anos antes, nas Olimpíadas de Munique, tinha vitimado toda a comitiva israelita. O mundial de 1978 foi jogado na Argentina do general Videla, que instrumentalizou a competição para tentar limpar a imagem internacional do regime e amainar os ânimos nacionais, tendo a equipa da casa vencido na célebre final dos papelinhos. O mundial de Espanha em 1982 foi jogado sob o medo das ameaças terroristas da ETA. Em 1986, no México, foi o mundial de Maradona, em que para além da vitória final, ainda houve engenho e arte para vingar o seu país da humilhação das Malvinas, quando derrotou a Inglaterra com um golo marcado com a mão de "Deus". Em 1990, em Itália, o mundial foi ganho pela Alemanha Federal, mas o mais agradável do torneio foi a surpresa africana dos Camarões, que quase derrota a arrogante Inglaterra. Em 1994, com o intuito óbvio de ganhar novos mercados para o seu "negócio", a FIFA atribuiu a organização do mundial aos EUA, tendo-se sagrado vencedor o Brasil. No último campeonato do mundo, realizado em França, o Brasil foi derrotado na final por uma selecção francesa composta por jogadores filhos de estrangeiros emigrados em França, o que serviu para conciliar um país que não se manifestava de forma tão pujante desde a libertação de Paris.Temos agora um novo mundial. Novo porque surgirão novas estrelas futebolísticas, e novas histórias para contar. Mas este também é um novo mundial porque é jogado no único espaço que se tinha mostrado até há pouco tempo indiferente ao desporto-rei. Desta forma, o nosso mundo torna-se efectivamente uma bola de futebol, contribuindo o ritual do jogo para alimentar a consciência de pertença a uma aldeia global cheia de contradições. Assim, em vez de simples espectadores de um jogo, seremos espectadores do mundo.