Doc Lisboa: Cinema do real no CCB
Entre sete minutos e cinco horas, cabe muito tempo. Todo o tempo que leva a percorrer um festival, desde o seu filme mais curto (o de sete minutos) ao mais longo (o de cinco horas). O DocLisboa - Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa (que sucede aos Encontros Internacionais de Cinema Documental da Amascultura, em Olival Basto) abriu ontem à noite no Centro Cultural de Belém (surgindo como a grande aposta desta instituição no cinema), com a exibição de "ABC Africa", do iraniano Abbas Kiarostami, e arranca hoje com as secções competitivas - internacional e nacional -, prolongando-se até dia 9. Pode-se pegar no tal filme de sete minutos, "Amber Eye" (4ª feira, pequeno auditório do CCB, às 21h, em competição), de Lars Rasmunssen, onde todos andam de olhos postos no chão, à beira-mar, em busca de âmbar, para lançar o mote do festival: quem se quiser entregar à prospecção cinéfila, encontra no DocLisboa terreno fértil para a descoberta de preciosidades. Se o documentário é reinante no DocLisboa e começa a dar pequenos sinais de vitalidade até no circuito comercial (com a fulgurante estreia de "Os Respigadores e a Respigadora", de Agnés Varda, em sala, no ano passado, ou mesmo do português "O Fato Completo ou à Procura de Alberto", de Inês de Medeiros, presente na competição nacional), o festival não deixa de integrar também a ficção: programada por Pierre-Marie Goulet, um dos responsáveis pelo excelente ciclo de cinema "O Olhar de Ulisses" da Porto 2001, a secção paralela (não-competitiva) "Um Rio, Duas Margens" projecta-se, sobretudo, como espaço de coincidência entre ficção e documentário, através de "associações de ideias". Nele, por exemplo, tentar-se-ão aproximações entre "Nanook of the North" (1922), obra fundadora do documentarismo, de Robert J. Flaherty, e "The Savage Innocents" (1960) , de Nicholas Ray, duas formas de olhar comunidades esquimós (hoje, às 14h15 e 16h30, no grande auditório).Mas as evidências de que ficção e documentário não andam de costas voltadas não ficam por aqui e bastará olhar para as secções competittivas para ver como o "real" no documentário se prefigura como uma noção elástica, não se furtando mesmo a "ficcionalizar". Pode até acontecer que os seus "praticantes" anunciem: "Detesto a palavra 'documentário'. Não acredito muito numa coisa chamada documentário" - Regina Guimarães, co-autora de "Dentro", com Saguenail (competição nacional), "dixit". A reserva não é tanto léxica, mas de dispositivo: a proposta que o festival e os realizadores fazem é a de não encerrar o documentário na mera reprodução do real, mas encará-lo como a adopção de pontos de vista (ou "pontos de vida") sobre uma matéria pré-existente que é o real. Ou: o documentário como crivo, sem pudor em deixar passar alguns elementos de ficção ou romanesco.Testemunho dessa vitalidade é a programação do DocLisboa, onde esse real assume as formas mais diversas: mais ou menos encenado, obedecendo a um guião ou à revelia dele, com a participação do realizador ou na ausência dele, comentado ou simplesmente registado, enquanto manifesto estético ou político, partindo de uma visão "engagée" ou lúdica.Para entrar de forma lúdica no festival, pode-se começar esta noite, às 22h30, no grande auditório, por "Offspring", do canadiano Barry Stevens. Integrado na secção "Docs From the Heart", espécie de programa afectivo (os filmes e autores de apreço), trata-se de uma busca pela identidade do pai do realizador - a demanda de Édipo e Luke Skywalker, com uma particularidade: Stevens resultou de uma inseminação artificial realizada em 1952, em Londres. Segue-se de pista em pista, como numa história detectivesca, recolhendo amostras de DNA nos principais "suspeitos", cruzando a busca actual com "home movies" e a afectuosa memória do pai (o adoptivo, melhor: o verdadeiro). Foi quando este faleceu, tinha Stevens 18 anos, que o "segredo" foi revelado: o realizador e a irmã tinham as suas teorias quanto ao pai biológico (por exemplo, o Príncipe Filipe, marido da Rainha Isabel II de Inglaterra...), mas "tinham que saber a verdade". A procura acabará, de facto, na descoberta de "novas famílias" - Stevens encontra um irmão que desconhecia e mais qualquer coisa... - e num tributo ao pai (aquele com que cresceu, não o pai biológico).Sob o imperativo da actualidade, surge o israelita "Detained" (em competição, às 16h15, pequeno auditório), de Anat Even e Ada Ushpiz - o festival também tem o seu filme palestiniano, "News Time". É a tentativa de olhar o outro lado: os realizadores filmam uma casa em Hebron, onde vivem três viúvas palestinianas com os seus filhos, no limite entre a zona palestiniana e o domínio dos judeus. Cercadas e invadidas por soldados israelitas, o que pode ser visto como uma espécie de "mea culpa" dos autores (filma-se sempre do ponto de vista das mulheres), é afinal um questionamento das próprias tradições palestinianas, através da afirmação da condição feminina - há uma cena tão dilacerante quanto temível, em que uma mulher confessa que gostaria de ver o marido morto, enquanto segura o frango que a irmã despedaça a cutelo.Ainda na competição internacional, dois títulos que deverão marcar o DocLisboa: o chinês "Tiexi District" (ver caixa), o tal de cinco horas, e o espanhol "Fuente Álamo", de Pablo Garcia (hoje, às 22h30, pequeno auditório). Este último é um impressionista (e impressionante) retrato de um dia de festa numa aldeia andaluza, sobretudo pela forma como nele se trabalha o tempo, através de uma dilatação serena e sensual, como se se desprendesse do calor tórrido sob o qual tudo se passa.