Matisse e Picasso: o diálogo que inaugura a pintura moderna
Durante mais de meio século, duas das mais poderosas personalidades da história da arte moderna, Pablo Picasso e Henri Matisse, mantiveram uma rivalidade que se tornou numa amizade e, finalmente, uma secreta colaboração em que cada um deles desenvolvia o último avanço feito pelo outro. Esse paralelismo não passou despercebido nem para os protagonistas nem para a crítica. Já em 1945, o Museu Victória e Alberto de Londres organizou uma mostra conjunta dos dois artistas. Agora, a Tate Modern leva a ideia até as últimas consequências numa monumental exposição, aberta até 18 de agosto, que confronta com minuciosa erudição 34 casos em que a mútua influência é explícita e claramente visível, documentando ao mesmo tempo o diálogo estilístico ao longo de cinco décadas. Este é, sem dúvida alguma, um dos grandes eventos culturais europeus do ano.Em Paris, antes da 1ª Guerra Mundial, alguns pintores de vanguarda adoptaram um curioso costume: recebiam os seus visitantes, especialmente outros artistas, com os seus quadros virados para a parede. Evitavam assim que os prezados colegas ou os "connaisseurs" lhes roubassem as suas mais recentes invenções ou achados. Personalidades da estatura de Henri Matisse e Pablo Picasso preferiam conhecer-se e trocar ideias em território neutro, por exemplo, o apartamento de Gertrude Stein e dos seus irmãos, coleccionadores pioneiros da obra de ambos os artistas.Quando aí foram apresentados, em Março de 1906, Matisse acabava de triunfar no Salon des Indépendants e na sua segunda mostra individual na Galeria Druet, enquanto Picasso ainda procurava a maneira de superar - em termos estéticos e publicitários - a sensacional estreia do Fauvismo em 1905. Leo Stein contaria, anos depois, os tensos encontros entre os dois pintores, o francês perfeitamente à vontade e o espanhol silencioso e isolado. Matisse já era considerado um "chefe de escola". Mas Picasso havia chegado a um impasse com o que anos mais tarde ficaria conhecido como o seu "período azul". O seu quadro "Les saltimbanques", no qual trabalhou durante longos meses, acabou por não ser exposto no Salão de Outono de 1905, porque o autor sabia que não podia concorrer com as escandalosas novidades de Matisse e dos seus amigos. Com o tempo, aliás, Picasso acabaria por atribuir-se a prioridade no uso das cores puras e arbitrárias num retrato, o que não era verdade.A exposição da Tate Modern permite esclarecer muitos dos enigmas desse período ao estabelecer a dialéctica das relações Matisse-Picasso ao longo de 50 anos. Por exemplo, fica claro que o francês, apesar do equilíbrio cartesiano que caracteriza a sua obra, foi o primeiro radical, e que Picasso foi, no período crucial que vai até pelo menos 1919, um seguidor. É fascinante ver, em cada uma das salas da Tate, como Picasso reconquista a vanguarda década a década. "Ninguém tem observado a obra de Matisse mais cuidadosamente do que eu, e ninguém tem observado a minha mais cuidadosamente que Matisse", diria Picasso. A mostra de Londres confirma a verdade dessas palavras. Mas, para entender o seu valor histórico, é preciso considerar em detalhe o contexto inicial.A versão estabelecida consagra o Cubismo como o movimento pioneiro da arte moderna. Os factos, porém, podem ser interpretados no sentido de que o Cubismo apenas consolidou o avanço decisivo do Fauvismo e gozou de uma gloriosa máquina publicitária (no bom sentido da palavra): o poeta Apollinaire - que é para o Modernismo o que Baudelaire foi para o Romantismo - publica, em 1913, "Les peintres cubistes". É verdade que Apollinaire também escreveu sobre Matisse e os seus colegas, mas apenas de maneira circunstancial. O problema é que o doce Guillaume, apesar de seu faro crítico, partilhou com o grande público de uma curiosa reacção retardada, provocada por um efeito de perspectiva histórica. Preparado pelo rompimento dos "fauves" com os princípios tradicionais, soube apreciar a audácia dos cubistas pelo simples facto de que o Cubismo, num determinado momento, tinha uma presença tão avassaladora que parecia maior e mais importante que o Fauvismo. Mas sem ele não teria sido possível: Braque, que partilha com Picasso a invenção do Cubismo, começou como fauvista. E nós, com o recuo que oferece a passagem do tempo, podemos ver o fenómeno cubista nas suas devidas proporções.Estas, na realidade, são bem menores em termos estéticos do que as que tem ganho o Fauvismo com o tempo. De facto, é possível afirmar que o Cubismo representou uma marcha atrás (para melhor pular até à abstracção, em 1910). O Cubismo pode ver visto como um prolongamento das conquistas de Cézanne, o que se explica pela apoteose da obra cézanniana nas grandes exposições de 1906 e 1907, cuja influência foi explicitamente reconhecida pelos cubistas. Porém, a visão do mundo através da geometria sólida não representa uma ruptura com o cânone tradicional, do qual Cézanne é a culminação definitiva. Nas intenções e nas obras, é Matisse e o Fauvismo que abrem o caminho ao admirável mundo novo do Modernismo.Aliás, não tão novo. Já Van Gogh declarava que queria substituir o "estudo da natureza" por aquilo que designava por "trabalho de cabeça". Conceito que, na realidade, perpassa a História da Arte desde o Romantismo, quando Delacroix declara a Baudelaire que a natureza é um "dicionário" e a pintura "uma lembrança que fala à memória", frase que Apollinaire cita em 1910. Picasso diria, bem mais tarde, depois da aventura cubista: "Pinto as formas como penso, não como as vejo". Mas a frase é apenas um eco dos conceitos que sustentam as experiências do Fauvismo já em 1905. No Verão desse ano, Matisse e Derain vão para a cidadezinha de Colliure, no Sul da França, e o primeiro decide ceder à sua "necessidade de expressão, esquecendo toda preocupação com a representação das coisas". Prefere uma "condensação das sensações", fazendo "gritar" as cores, atitude tão radicalmente nova que nem sequer a crítica mais avançada consegue entender. O Cubismo, pelo contrário, mostrava uma clara linhagem cézanniana, facilmente identificada pela crítica. Foi isso que determinou a sua importância histórica.É claro que a História da Arte não pode ser vista como um combate entre grandes artistas e as suas escolas. O mérito da exposição da Tate Modern é o de que demonstra com exemplos concretos a tese do recentemente falecido E.H. Gombrich, de que cada conquista da arte se apoia em outras obras. O que explica, então, o mal-entendido histórico que postula a obra de Picasso e o Cubismo como o "big-bang" da modernidade? Já examinámos os factores históricos. Mas há um outro elemento mais importante. As grandes figuras do Fauvismo, a começar por Matisse, não fizeram a transição para a etapa lógica seguinte, a arte abstracta. A razão é simples: essa era a tarefa da geração seguinte. Tanto Matisse e os "fauves" como Picasso e os cubistas eram quase todos homens do século XIX, e a façanha de abrir as portas à arte moderna foi uma culminação. Para os outros, os homens do século XX, seria um ponto de partida.