O anterior filme de David Fincher, "Clube de Combate", acabava com as imagens de um arranha-céus a desabar. E, recorde-se, o pesadelo recorrente da personagem de Brad Pitt (ou de Edward Norton, já que, no fundo, os dois eram só um) era um acidente de avião. Faz lembrar alguma coisa que aconteceu subitamente no Verão passado? Claro que faz, mas também é óbvio que só pode ser coincidência - e a maneira como Fincher filmava a destruição, alegremente acompanhada por uma canção dos Pixies, ecoava um espírito de "purificação" anarquista e direitista que na altura talvez fosse mais associável a Timothy McVeigh (o bombista de Oklahoma) ou ao "Unabomber" do que premonitório de Bin Laden. Era, de resto, o final perfeito para o diabólico (e, no limite, indecifrável) carrossel que "Clube de Combate", em todo o seu complexo puritanismo, constituía de uma ponta a outra.
Mas as coincidências podem ser significativas, e esta parece sê-lo. "Sala de Pânico", que não foi escrito antes de 11 de Setembro passado mas foi filmado depois, conta a história de uma mãe e de uma filha ameaçadas e sitiadas na sua casa nova-iorquina, obrigadas a refugiar-se numa divisão "bunkerizada" e inexpugnável designada por "sala do pânico". Não deixa de ser, sem pretender "ultrapassar" o plano das coincidências, um "raccord" curioso o que se pode estabelecer entre estes três momentos: "Clube de Combate", o 11 de Setembro e "Sala de Pânico". Um "raccord" subterrâneo, certamente alheio à vontade de Fincher, mas que parece irresistível e, mais, parece fazer um perverso sentido a partir do momento em que o olhar de Fincher sobre a América evoca precisamente os seus subterrâneos, lugar de geração de um mal-estar que vem do fundo e emana até à superfície, como em "Seven" e "Clube de Combate", como, de maneira quase parabólica, em "Sala de Pânico".
Se a visão que Fincher tem da América é marcada por este mal-estar (que não é só de origem política, nem social, nem moral, nem é só de origem externa ou interna mas, antes, uma coisa compósita e turva), dir-se-ia que o cineasta não deixa, ao mesmo tempo, de filmar uma hipótese de superação dele. Catarses e expiações: é quase só isso que Fincher filma, seja na Sigourney Weaver de "Alien", no Brad Pitt de "Seven", no Michael Douglas de "O Jogo", no par Brad Pitt/Edward Norton de "Clube de Combate" - ou na Jodie Foster de "Sala de Pânico". Num certo sentido, esse tema (ou um seu derivado, o da provação) domina o filme. Ao mesmo tempo, serve para medir até que ponto "Sala de Pânico" acaba por ser um filme falhado, um daqueles em que as ideias do realizador são mais adivinhadas do que propriamente vistas. Se Fincher domina razoavelmente os mecanismos do "thriller", falta complexidade moral à personagem de Foster, falta sentir-se a "culpa" dela (de que a "sala de pânico" seria, em simultâneo, quer um sinal quer, na sua pretensão de segurança e inexpugnabilidade, a máxima expressão).
É uma questão de aura e não de talento - e o dela não se discute: Foster é demasiado dura e sólida, há uma dimensão da personagem que se pressente mas que não se vê verdadeiramente; imaginamos que Fincher tinha as suas razões para querer Nicole Kidman no papel e imaginamos ainda melhor que, com Foster, acabou por levar a personagem para uma definição próxima da de Sigourney Weaver em "Alien", como figura-símbolo da maternidade (há a personagem da filha diabética, e ainda a do pai ausente, que quando volta é para ser imediatamente castigado, neste caso, espancado). O resultado é que o "mal" acaba, demasiado expressamente, por vir de fora (encarnado pelos três assaltantes), quando tudo no filme parecia pedir que estivesse mais disseminado, e de alguma maneira já estivesse lá dentro. Ou, por outras palavras, que se sentisse na personagem uma partilha, uma participação na origem desse mal.
É um filme que ganha, como se depreende, com a luz que os outros filmes de Fincher lançam sobre ele - e dizê-lo é menos fazer "política de autores" do que constatar que nunca seria por filmes como "Sala de Pânico" que Fincher se tornaria importante. Ganha ainda mais se cedermos à tentação de extrapolar o que ele possa conter de simbólico e/ou metafórico. E aí, voltando às coincidências e obra de Fincher, podemos vê-lo como mais uma peça num retrato de conjunto da América contemporânea, qualquer coisa entre um "clube de combate" e uma "sala de pânico".