(Re)nascido a 20 de Maio
A independência de Timor-Leste, agora solene e pacificamente (re)proclamada, recuperando a declaração unilateral de Novembro de 1975, releva seguramente do prodígio. De facto, só a fortuna da História pode explicar que um pequeno povo, perdido em meia ilha remota da Indonésia, ocupado e anexado por uma grande potência perante o fruste protesto e indiferença passiva da comunidade internacional, poderia alguma vez realizar as suas aspirações à independência, por mais determinada, persistente e indómita que fosse a sua luta. A primeira razão do sucesso está porém seguramente aí, nesse combate a que só o nome de heroísmo pode fazer jus, na inabalável fé num triunfo final, à custa de sacrifícios de toda a ordem. A independência repousa sobre dezenas ou centenas de milhares de mortos, primeiro na invasão e subsequente ocupação indonésia, depois na resistência prolongada, finalmente na devastação posterior ao referendo pela independência. Mas todo esse sofrimento poderia ter sido em vão se não tivesse havido a feliz conjugação de uma série de factores e circunstâncias que levaram homens como o presidente Habibie da Indonésia, Koffi Annan, Clinton, António Guterres e Jorge Sampaio (para só citar os mais importantes) a assumirem decisões e a desencadearem processos, cuja verificação ou sucesso estariam fora de toda a probabilidade em condições normais. A independência de Timor é sobretudo um testemunho de que o ideal de independência nacional continua a ser uma força imparável de motivação e de acção colectiva dos povos. Os indonésios aprenderam à sua custa que a sua política de anexação e de integração, apesar do seu esforço de investimento em infra-estruturas e noutras áreas durante a ocupação, nada pôde contra a forte personalidade e identidade histórica e cultural dos timorenses. Os demais povos que por esse mundo fora ainda se encontram privados do direito de se governarem a si mesmos, por força da colonização, anexação ou qualquer outra forma de opressão alheia - como, por exemplo, os palestinianos, os curdos, os tibetanos, os caxemires - podem retirar do triunfo final de Timor-Leste um suplemento de ânimo e de esperança. Mantida a resistência, há sempre a probabilidade de as circunstâncias se conjugarem de modo tão feliz como no caso da antiga colónia portuguesa do Oriente.Outro aspecto muito relevante no caso de Timor-Leste foi o papel da luta pela defesa dos direitos humanos. Em certo sentido, a independência de Timor-Leste não mais é do que um "efeito colateral" desse novo combate da comunidade internacional pelos direitos humanos. Foi por causa deles que se manteve na agenda internacional a questão timorense, mesmo quando as perspectivas de independência eram pouco menos que utópicas. Foi em nome deles que numerosas organizações não governamentais se mobilizaram em favor de Timor-Leste e ajudaram a sensibilizar a opinião pública internacional, sobretudo na Europa e na Austrália. Foi ainda em virtude deles que na própria Indonésia os grupos de defesa dos direitos humanos puderam ligar a solidariedade com Timor com a sua própria luta pela democratização do seu país (e só o fim da ditadura indonésia proporcionou novas perspectivas na questão timorense). Sem as maciças violações dos direitos humanos em Timor-Leste (de que a matança do cemitério de Santa Cruz, em 1991, ficará a perpetuar a memória) e sem a nova consciência dos direitos humanos no mundo de hoje, provavelmente ainda não estaríamos a celebrar o nascimento do novo país.As Nações Unidas e a comunidade internacional em geral saem airosamente deste sucesso timorense. Não seguramente pela inércia durante a ocupação indonésia, embora nunca reconhecida internacionalmente. Mas porque as Nações Unidas souberam também aproveitar a oportunidade da abertura indonésia para o referendo, em 1999, assumindo a responsabilidade pela sua realização e depois aceitaram a intervenção no território, primeiro em operação de manutenção de paz, depois como instância administradora do território, a caminho da independência, num papel nunca antes desempenhado pela organização. O caso de Timor vai seguramente ficar registado na história da desenvolvimento do direito internacional e sobretudo das Nações Unidas como instância de garantia da paz e dos direitos dos povos. Também Portugal pode sentir-se aliviado e orgulhoso. Aliviado porque vê chegar a um fim feliz o pesadelo e o incómodo das suas responsabilidades na tragédia de Timor, com uma colonização triste, uma descolonização inconsequente, uma saída atabalhoada do território, abrindo caminho à ocupação indonésia. Orgulhoso, porém, porque, mais do que ninguém, alimentou a chama da resistência por todos os meios, fez de Timor um desígnio nacional e uma prioridade diplomática internacional, agarrou com destemor o desafio do referendo da autonomia consentido pelo novas autoridades indonésias em 1999 e se mobilizou, como em raros momentos da sua história, para condenar a devastação indonésia a seguir ao referendo que determinou a independência, e finalmente prodigalizou desde então ao território uma ajuda financeira, material e humana que tem de considerar-se única. A emocionada, e emocionante, referência do Presidente da nova República, Xanana Gusmão, ao contributo português e da comunidade lusófona para a causa timorense não podia ser mais justa e gratificante.Como declarou o secretário-geral da ONU, na sua bela mensagem ao novo país, a independência é apenas o começo da caminhada. Agora é preciso transformar a independência jurídico-internacional em independência real, nos campos político, económico e cultural. As condições de partida são em muitos aspectos preocupantes, quer no que se refere à problemática coesão política e social (são evidentes as clivagens políticas dos principais protagonistas bem como as fracturas sócios-culturais), quer no que diz respeito às enormes carências no campo económico e social (falta de infra-estruturas, de emprego, de serviços públicos básicos, etc.). Não vão ser fáceis as próprias tarefas de "state building" (edificação do Estado).Por isso, a mesma comunidade internacional que ajudou a conquistar a independência não pode agora abandonar os timorenses e deixá-los subitamente entregues a si próprios. Em matéria de decisão e de governo, agora é a vez deles. Mas nas condições em que iniciam a sua vida como país independente só a assistência da comunidade internacional pode assegurar condições mínimas de estabilidade. A continuação de uma missão das Nações Unidas no território é um boa solução. Por seu lado, depois de tudo o que fez, Portugal não pode falhar agora o seu compromisso com o último e longínquo pedaço do antigo império que a história lhe confiou e que finalmente encontrou o seu destino de nação independente. O novo país vai fazer parte da CPLP. O mínimo que se pode esperar é que Portugal e os demais países lusófonos mais ricos, nomeadamente o Brasil, não deixem de prestar ao novo membro do clube lusófono a ajuda de que ele tão intensamente necessita.