A ala portuguesa da resistência timorense

Estes testemunhos que o PÚBLICO recupera, não fazem o todo da guarda avançada de Timor no hemisfério de todas as decisões. São apenas alguns que servem para espelhar aquelas qualidades que são o denominador comum entre os que estiveram sempre ao lado dos timorenses e, após mais de 20 anos de luta, ajudaram a mudar a maré a favor da ilha-crocodilo nos palcos internacionais. É o testemunho do triunfo da tenacidade quase obsessiva e a um apurado sentido sobre qual pode ser o papel de um cidadão num Estado de direito.Luísa Teotónio Pereira foi um dos membros do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC) que percebeu "logo em Setembro de 1974", que era preciso fazer algo por Timor. "Foi nesse mês que chegou o Costa Alves, aquele meteorologista muito conhecido, que veio aqui dizer que aquilo ameaçava, que a situação era muito grave." Começaram então a recolher informação, um esforço "que se tornou constante depois da invasão indonésia". A primeira iniciativa foi a organização, em 1979, da primeira conferência internacional sobre Timor em Lisboa. Dois anos mais tarde, estiveram em Itália numa sessão do tribunal permanente dos povos. Para além do "impacto" e da "adesão" que suscitou, essa iniciativa teve como consequência o nascimento da Comissão para os Direitos do Povo Maubere (CDPM). Viria a tornar-se numa das mais importantes organizações na defesa da causa. Luísa Teotónio Pereira assumiu a liderança em 1983. Um ano depois a CDPM entrava com Timor por uma das portas das Nações Unidas. Passou a ir duas vezes por ano a Genebra, à Comissão dos Direitos Humanos. "Foi aí que recomeçou o ciclo diplomático de Timor", diz.A partir desse momento, foram "ganhando terreno pouco a pouco", nas indiferentes instâncias internacionais. Mas percebe-se que para Luísa Teotónio Pereira o marco que sobressalta tem a data de 1991 e a localização no cemitério de Santa Cruz: "Com o massacre conseguimos tornar Timor numa questão nacional" e pressionar ainda mais a "responsabilidade" das autoridades portuguesas. Mas "só tivemos a certeza com a queda do [ditador indonésio] Suharto."Luísa Teotónio Pereira já não está à frente da CDPM. A comissão cessou a sua actividade a 4 de Maio porque, como se lê no comunicado emitido, a "razão essencial da sua existência se esgotou". Missão cumprida para a CDPM, mas não para Luísa Teotónio Pereira. Em Timor há mais de uma semana, já percebeu que ainda há onde ajudar: "Estando aqui sente-se o apelo para ficar. Mas sempre achei que a minha missão era mais em Portugal, junto do governo português. A cooperação tem de melhorar bastante." António Barbedo de Magalhães só aceitou embrenhar-se na luta a partir de 1981. Não por falta de conhecimento sobre a criminosa invasão indonésia mas, talvez, por excesso desta. É que o agora professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto estava lá quando tudo começou em 1975. Na altura era o único oficial português licenciado no território. Habilitação que fez com que a autoridade portuguesa o colocasse à frente de um curso de reciclagem para professores timorenses. Pouco tempo antes da quase guerra civil estourar em Timor - entre os partidos UDT e FRETILIN - coordenava um projecto que incluía cerca de 200 docentes. "A maior parte das pessoas foi assassinada depois pelos indonésios", diz num desabafo doloroso, desfiando um rol de nomes e histórias carregadas de tortura e morte. "Vim de lá com uma tremendíssima depressão", confessou.Até ao princípio da década de 80 limitou-se, portanto, a seguir de perto a questão. Uma atitude que só mudou depois de obrigar os timorenses a aceitar o seu "não reconhecimento da República Democrática de Timor-Leste", declarada unilateralmente em 1975. "Era para a responsabilidade de Portugal enquanto potência administrante que era preciso chamar a atenção", explica. A luta pela defesa dos direitos dos timorenses arrancou com a organização da primeira mesa redonda com deputados à Assembleia da República de todos os partidos com assento parlamentar , "que na altura não eram poucos, eram nove". Nesse encontro foram criadas as bases da primeira comissão eventual para o acompanhamento da situação em Timor-Leste, em São Bento. Para lá das Jornadas de Timor da Universidade do Porto - que foram até 1997 - obrigou o Ocidente a discutir Timor ao longo de vinte anos. Organizou conferências na Europa, Austrália, Estados Unidos e Canadá. Sempre com uma premissa fundamental: a Indonésia tinha de estar presente. Barbedo não deixou nunca a elite da oposição indonésia esquecer Timor. Para as conferências tentava ter um qualquer representante do regime autoritário, para além de "refugiados políticos" ou, mais tarde, cidadãos que não o aceitavam. Cidadãos como o sindicalista Mochtar Pakpatan, que esteve em Portugal no ano de 1996. Foi com ele que o professor viveu um dos mais significativos momentos pessoais da sua luta: "Quando cá veio trouxe-me a terceira edição clandestina de 'Timor-Leste: ocupação indonésia e genocídio' traduzido para a língua deles", um dos cinco livros que Barbedo publicou ao longo dos anos sobre Timor.Nenhum país do Ocidente contestava, naqueles anos, a invasão. "Todos os políticos do planeta consideravam Timor um assunto arrumado... E todos faziam pressão para que todos se calassem!" Então e Portugal? "O nosso país fez pouco mas o suficiente", reconhece. Para Barbedo a "queixa na ONU", aquando da invasão, e as votações que apadrinhou em Nova Iorque "criaram o quadro que permitiria ao secretário-geral da ONU a intervir", mais tarde em 1999, ano em que regressou à ilha.Quando o PÚBLICO falou com ele, preparava-se para voltar. Mas, alerta, só porque o convidaram. O professor explica: "Há uns meses uma brasileira perguntou-me porque é que eu não estava já em Timor, a ajudar os timorenses. Eu respondi-lhe que ia pensar nisso mas que antes ia passar por Brasília, para dar a minha opinião ao Fernando Henrique Cardoso sobre como governar o seu país... Então eu, que lutei toda a minha vida contra o colonialismo, por que é que hei-de imaginar que tenho um papel a desempenhar num outro país independente que é Timor?"Não é discriminação ou xenofobia. A nacionalidade francesa de Jean Pierre Catry, radicado em Portugal há 33 anos, fez toda a diferença em 1991. Há dez anos, o passaporte luso tornava automaticamente o seu portador em 'persona non grata' para as autoridades indonésias. Como fazer então para testemunhar os horrores indonésios e levar a mensagem a Timor que não estava totalmente esquecido? "Eu fui como intérprete numa organização francesa que queria ver no terreno o que podia fazer para ajudar", recorda Catry. Entrou em Timor graças ao seu passaporte francês, poucos meses antes da tragédia que marcaria a reviravolta: o massacre no cemitério de Santa Cruz, em Novembro de 1991. Como que adivinhando o que estava para acontecer veio de lá com o sentimento que os timorenses antes preferiam quebrar que torcer: "O nosso receio à partida era que a juventude formada nas escolas indonésias estivesse lentamente a integrar-se. Poucos dias lá bastaram para ver que não havia possibilidade nenhuma de isso acontecer", lembra.Foi esse o corolário do trabalho de Jean Pierre Catry que descobriu Timor através do CIDAC. "Em 1982, quando o papa [João Paulo II] veio a Portugal recebemos cá [CIDAC] um documento de Timor que nos alertava para o problema da religião. Foi por isso que decidimos criar uma organização 'A paz é possível em Timor-Leste'." A primeira iniciativa foi o envio ao papa de um dossier composto pelos ex-missionários que tinham estado em Timor. A partir daí nunca mais pararam. A "preocupação foi sempre encontrar outros [individualidades com peso] que dessem credibilidade e visibilidade" ao problema de Timor. O então bispo de Setúbal, Dom Manuel Martins, foi uma das pessoas com quem trabalharam.Ao mesmo tempo, procurava-se manter Timor na ordem do dia da opinião pública portuguesa. O que nos primeiros tempos não foi nada fácil. "Da parte dos governos portugueses desses tempos havia uma grande resistência. Porque não acreditavam [que fosse possível para Timor outra solução para lá da integração] e porque tinham outras preocupações", explica o francês. Como por exemplo, a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, "que não queria nem sequer ouvir falar de Timor". Catry sentia que desagradava, até pelos pequenos episódios que viveu: "Eu comecei a escrever sobre Timor no 'Diário de Notícias' em 1986. Lembro-me que uma vez recebemos aqui [no CIDAC] uma chamada do gabinete do primeiro-ministro [Cavaco Silva] a perguntar quem era esse francês que escrevia sobre Timor..."Um episódio divertido para Catry, que classifica o tratamento da questão por Portugal como "menos mau". "Nunca cedeu, mas também nunca fez muito."Foi em 1987 que o então bispo de Setúbal foi a Nova Iorque. Mais precisamente "às Nações Unidas". Foi na qualidade de presidente da secção portuguesa da organização internacional cristã, Pax Christi, e em nome dos timorenses. "Fui lá fazer o meu dever, clamar, gritar quando a paz está ameaçada", explica. Ainda hoje recorda a imponência do acto. "Aquilo era uma grande assembleia, não me passara pela cabeça que fosse tão solene", relembra. Tão solene que as repercussões foram igualmente assinaláveis. Também o bispo sentiu que estava a ser incómodo. Até mesmo entre os seus: "A Santa Sé alinhava com os grandes países. Julgava que era melhor que Timor estivesse integrado na Indonésia." O que não o impediu de avançar com outra iniciativa de impacto. "Eu pedi aos bispos que escrevessem uma carta à ONU. Alertei-os para reagirem tendo em conta que havia um povo que estava a ser amesquinhado." O número de missivas enviadas ultrapassou a centena.E por isso aconteceu o que aconteceu: "O gabinete do cardeal Agostino Casaroli, que era secretário de Estado do Vaticano, enviou-me uma carta. Eu fui advertido que estava a cantar fora do coro." Na altura ficou magoado com a hierarquia. Afinal, não fazia mais nada a não ser "proclamar a doutrina" que lhe haviam ensinado. "A Igreja não devia funcionar na lógica das conveniências, não é?" Não havia alternativa para Dom Manuel Martins. "Sentia-me na obrigação de o fazer na qualidade de português, cristão e bispo." Era o que respondia sempre que o confrontavam com os embaraços que criavam as suas tomadas de posição.E agora, que a liberdade está assegurada, não terá vontade de participar na reconstrução do país? "Não sei... O Dom Ximenes Belo tem feito uns apelos, que faltam professores para as universidades... Eu ofereci-me por duas vezes... Se me pedirem, vou ter de considerar...." Não se importava, portanto, de ir para a ilha fazer "trabalho de sapa". Até porque como reconheceu isso acabava por ser determinante. Tal como o esforço "dos pequenos", dos que nunca desistiram de Timor: "Foi um poeta francês, Edmond Rostand, quem o disse. São as letras maiúsculas que compõem um título. Mas são as minúsculas que escrevem o livro".

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