O estranho mundo de Nava
Brutalmente assassinado em Bruxelas, onde residia, em Maio de 1995, Luís Miguel Nava viveu apenas 37 anos. Entre 1979 e 1994, publicou seis livros de poemas, agora reunidos num só volume, com prefácio de Fernando Pinto do Amaral e organização e posfácio de Gastão Cruz. Da poesia de Nava, diz o primeiro que ela continua a "destacar-se como um fulgurante meteoro no panorama poético português das últimas décadas". De facto, desde esse já longínquo ano de 1979, quando Nava publicou "Películas" - a sua obra de estreia, se descontarmos um livro de adolescência que depressa rejeitou -, é bem possível que a poesia portuguesa não tenha visto surgir nenhuma outra voz tão absolutamente singular. No plano formal, essa singularidade afirma-se, desde logo, no recurso a uma construção frásica que se diria mais própria da prosa ensaística. Não que estes poemas tenham seja o que for de ensaístico, no sentido em que o poderíamos afirmar, por exemplo, dos textos poéticos de Fernando Guerreiro, ou mesmo, noutra acepção, dos de Ramos Rosa. O que aproxima a poesia de Nava do ensaio é apenas a utilização de frases extensas, pontuadas com uma correcção exemplar (do ponto de vista da prosa), muitas vezes providas de orações intercalares e generosamente guarnecidas de pronomes relativos. Quando se quer transmitir com precisão uma informação complexa, é natural que se privilegie um discurso deste tipo. E o universo de Nava é seguramente complexo. Quem lê uma obra de divulgação de física quântica rapidamente se apercebe de que, no mundo invisualizável das partículas subatómicas, as nossas referências, os nossos parâmetros mentais, não só não ajudam, como atrapalham. Aos leitores de Nava, acontece o mesmo. Tal como o electrão, que se comporta como partícula ou onda consoante o modo como é observado, e nesse sentido pode estar em vários sítios ao mesmo tempo, também o corpo (e veremos que não apenas o corpo) do sujeito que fala nestes poemas viola sistematicamente o princípio da não ubiquidade. Mas a sofisticada sintaxe do poeta, no seu tom de descrição neutral, serve também, e um tanto paradoxalmente, para intensificar esta escrita e conferir verosimilhança à realidade subjectiva do inquietante mundo que Nava nos revela.Cerca de um ano e meio antes de morrer, o autor participou num colóquio de homenagem a Eugénio de Andrade, no Porto, onde apresentou um texto chamado "O amigo mais íntimo do sol". Pelo título, pensar-se-ia em mais uma reivindicação do carácter solar da poesia em causa, à qual Nava, aliás, já dedicara um pequeno volume em 1987. Mas a tese central desse texto era outra: o que Nava nele procurou demonstrar foi a extensão, na poesia de Eugénio, dessa prática que consiste em fazer convergir numa só sensação impressões colhidas através de diferentes sentidos. Nava sugeria a influência indirecta de Baudelaire e da sua teoria das correspondências, e sobretudo a de Rilke, para quem o poeta devia mesmo exercitar esta sinestesia radical, visando o dia em que (a tradução é do próprio Nava) "o seu êxtase contido o leve de um único salto e de um só fôlego através dos cinco jardins". O que nos importa não é tanto a pertinência da tese de Nava sobre Eugénio, que, de resto, parece indiscutível, mas a suspeita de que não terá sido por acaso que escolheu precisamente este ponto de vista. É que, em certa medida, também ele é, por analogia, uma espécie de alucinado sinesteta, como o notou já a ensaísta Rosa Maria Martelo num texto publicado no nº3 da Revista "Relâmpago", no qual fala de uma "hipersinestesia, radical e absoluta (...), onde é possível ver uma uma releitura ampliada do 'desregramento de todos os sentidos' de Rimbaud". No estranho universo de Nava, tudo se interpenetra e se funde, ou, para ser mais exacto, tudo é sentido como se assim fosse. E neste tudo cabe o corpo, da pele (ou mesmo da roupa que a cobre) às mais recônditas vísceras, cabem os objectos do dia-a-dia e as paisagens, o mar e o céu, cabem todos os tempos, do presente actual (perdoe-se o aparente pleonasmo) a todos os presentes que a memória conserva, cabem os afectos e as palavras, a consciência e o coração. Esta porosidade geral das coisas, que permite que tudo comunique entre si, não supõe apenas um universo que não se rege pelas leis da física clássica, mas implica igualmente uma literal materialização das sensações. Em Nava, a memória é, também, um objecto físico, e o coração tomado em acepção metafórica não é menos palpável do que o órgão que bombeia o sangue."Películas" conquistou o prémio de revelação da APE em 1978. Nava tinha 21 anos. No entanto, este livro mostra já tudo o que virá a confirmar-se como essencial na sua escrita. Veja-se este excerto do poema "Apenas a folhagem": "(...) Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto, o que me põe a braços [a simpatia por expressões idiomáticas de uso corrente é outra marca desta escrita] com as palavras. As raízes entram-lhe no sangue, abrem-lhe internos focos de paixão, não tarda que penetrem pela terra a cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhe os olhos (...)". Fernando Pinto do Amaral atribui a Nava "uma extrema criatividade metafórica". Todavia, é possível que metáfora não seja a palavra indicada para estes textos minuciosamente descritivos. Ou pode ser que estejamos perante uma só metáfora, da qual decorrem todas as outras .O próprio Nava inclui, em "Películas", uma "ars poetica" que consta de um só verso: "O mar, no seu lugar pôr um relâmpago". Não se trata apenas de atestar que um relâmpago pode evocar o mar. Num momento definido, e de determinado ponto de vista, mar e relâmpago são, para Nava, coisas correspondentes e comutáveis, no sentido matemático do termo. A intrincada rede de correspondências que esta poesia tece nada tem de aleatória, ainda que o seu exacto alcance esteja irremediavelmente vedado ao leitor, justamente porque não se reduz a uma mera e partilhável construção mental. Isso mesmo se sugere num dos mais notáveis poemas de "Rebentação" (1984), intitulado "O Rei": "O mar está-nos no corpo; enquanto alguém/ a quem o coração serve de rei/ dispõe no tabuleiro as outras peças// rebenta-lhe na mão; há entre as peças/ e o mar cumplicidades de que só/ quem joga estima o peso em cada lance."Em "Rebentação", que talvez seja o melhor livro de Nava, o mundo que começara a revelar-se em "Películas" é levado ao seu apogeu. É um mundo que conserva ainda uma energia por vezes tocada de júbilo. A partir de "O Céu Sob as Entranhas" (1989), se quisermos manter a analogia com as ciências físicas, a acção da segunda lei da termodinâmica começa a tornar-se devastadora e o cenário abeira-se do caos. "Não parece, realmente, fácil a aceitação de uma poesia de trevas - e foi nessa direcção que inexoravelmente caminhou a de Luís Miguel Nava", escreve, com inteira justiça, Gastão Cruz. E, nesse caminho, as próprias "regras" e propriedades físicas do mundo de Nava vão-se alterando. Nos primeiros livros, a dureza geral das coisas, para citar Vítor Matos e Sá, tornava-se elástica e fluida. "(...) Elástico, adesivo, eis dois dos atributos que, ao dar por acabado o livro de que este texto pode, entre outros, ser a introdução, mais me fascinam (...)", escreve em "Rebentação". Já nos dois últimos livros, como se essa elasticidade tivesse sido levada a limites insuportáveis, tudo se fragmenta e estilhaça. O poema "Estacas", de "O Céu Sob as Entranhas", principia assim: "Os meus ossos estão espetados no deserto, não há um só no meu corpo que lhe escape./ Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir aos outros, alinhados./ Seria absurdo falar-se de esqueleto". E "Borrasca", de "Vulcão" (1994), abre com esta frase, que nos servirá de fecho: "Estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida, através da qual a carne supurava".