Gravura chinesa tradicional no Centro Cultural de Cascais
Em tempos, Kwok On, um homem de negócios chinês de Taiwan, ofereceu a um amigo francês, Jacques Pimpaneau, um conjunto de gravuras tradicionais chinesas. Pimpaneau, em memória de quem lhe tinha feito o presente, decidiu que iria criar um museu em Paris dedicado à arte tradicional oriental. Foi esta a origem do museu Kwok On, que funcionou em Paris até há poucos anos, e cuja colecção acabaria por ir parar às mãos da Fundação Oriente. Parte desta colecção, o núcleo das gravuras chinesas tradicionais, está agora em exposição no Centro Cultural de Cascais. Os comissários - o próprio Jacques Pimpaneau e Sylvie Gonfond - dizem que o presente inicial de Kwok On acabou por suscitar uma vocação coleccionista que chegou a reunir dezenas de milhar de peças, desde o mobiliário até às obras feitas em papel. O museu, que se situava na Rue des Francs Bourgeois, na capital francesa, acabou por ter de fechar as portas por desentendimentos com a Câmara Municipal de Paris. E, por isso, o facto de a colecção estar agora em Portugal, na posse de uma fundação que tem por objectivo o estreitamento dos laços culturais entre Portugal e o Oriente, acabou por ser positivo. Noutras exposições realizadas pela fundação, como a que teve lugar durante o Verão passado no Palácio Nacional da Ajuda, já se incluíam peças com esta origem. E nos novos locais da Fundação, no Porto de Lisboa, prevê-se que exista um museu que apresentará periodicamente peças do núcleo Kwok On.Mas vejamos a exposição de gravura. São dezenas e dezenas de peças e acessórios - como matrizes em madeira e livros de estampas - que se distribuem por dois dos pisos do centro cultural, agrupados segundo regiões e estilos, e que introduzem o espectador num universo de cor e desenho, povoado por personagens mitológicos, heróis, cenas de contos e lendas populares e outras, que se adivinham inspiradas na ópera e no teatro chineses. Obras tradicionais e populares estas, que adivinhamos destinadas a uma clientela rural, de baixas posses económicas, e que assim satisfazia a necessidade ou a vontade de decorar o interior onde vivia. A gravura tradicional chinesa, como sempre acontece com as artes tradicionais, vive entre a arte e o artesanato.E, porque se trata de arte tradicional, as peças mais antigas que aqui encontramos datam do século XIX. É interessante fazer uma comparação com a gravura europeia da mesma época, que privilegiou desde muito cedo as técnicas sobre cobre, e reparar que aqui a gravura sobre madeira domina. Aliás, como foi na China que se inventou a imprensa, isso não é surpreendente. No século XVII, é a vez da descoberta da gravura a cores, pela repetição, num mesmo suporte, de impressões com tintas diversas. A popularização deste tipo de peças dá-se um século mais tarde: eram baratas e possuíam um brilho e uma policromia que as tornava extremamente atraentes. Também como quase sempre aconteceu, a China acabou por exportar esta técnica para o Japão, que a sofisticou; é ela que está na base das famosas estampas japonesas que tanto atraíram os impressionistas no século XIX.Entretanto, as religiões difundidas na China contribuíram também para a propagação das imagens sobre papel. O budismo utiliza imagens sagradas e o taoísmo servia-se de "papéis mágicos", uma espécie de talismã. Quanto à administração chinesa, utilizava, desde a antiguidade, selos em papel, por vezes de grande dimensão, para diversos fins. Havia assim, muito antes do século XVIII, um terreno propício ao gosto pelas imagens gravadas que apenas precisava dos meios necessários para frutificar. Esses meios foram trazidos pela técnica e rapidamente se divulgaram por todo o império da China.Na exposição, há justamente alguns exemplares dos selos que em tempos se colavam nas portas das casas. Estes, que devem ser renovados todos os anos por altura do Ano Novo, eram diferentes de família para família, e tanto podiam representar a deusa da Compaixão como o deus das Riquezas ou o deus dos Comerciantes. Nos estábulos, podia-se colar a imagem do deus Búfalo ou do deus Cavalo. Mas o objectivo era sempre o mesmo: trazer protecção e prosperidade para determinada casa.De resto, e apesar do número limitado de temas, a diversidade estilística é impressionante. De resto, e apesar do número limitado de temas, a diversidade estilística é impressionante. E por aí se pode perceber a distância que separava os principais centros produtores chineses: da província de Yunnan, por exemplo, de onde vêm figuras monocromáticas e exclusivamente religiosas, até Yanliuqing, onde as gravuras eram inteiramente pintadas à mão e atingiam um requinte que as aparentava à pintura. Noutros casos, como na província de Jiangsu, o cromatismo obtido é de origem mista: certas cores são impressas, outras pintadas à mão.A Revolução Cultural, como é evidente, destruiu muitas destas obras. Mesmo assim, e apesar da introdução da gravura industrial e da litografia, a gravura chinesa tradicional ainda subsiste em alguns raros locais.