Dois livros, um conflito, quase o mesmo olhar

Comecemos pelas apresentações: Alain Gresh é redactor-chefe do jornal francês "Le Monde Diplomatique" e autor de várias obras sobre o Médio Oriente, onde nasceu (no Egipto) e que traz "no coração". Em "Israel, Palestina - Verdades Sobre Um Conflito", faz questão de informar que a mãe é judia, o pai um cristão copta e ele um ateu, porque é filho de uma "geração que veio à política nos anos 60 (...) onde nem as origens nem a religião de cada um tinha qualquer peso nas [nossas] análises, nas [nossas] lutas, nas [nossas] certezas". Marwan Bishara, por seu turno, é escritor e jornalista palestiniano, residente em Paris, onde é investigador na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais e professor na Universidade Americana. O seu irmão, Azmi Bishara, é deputado no Knesset, o Parlamento em Telavive, e foi o primeiro (e único) palestiniano-israelita a candidatar-se a chefe de Governo de um Estado que ele preferia que fosse "de todos os cidadãos" e não apenas judaico. Em "Palestina, Israel - A Paz ou o Apartheid", Marwan Bishara é mais duro do que Alain Gresh na linguagem utilizada. Não é de estranhar: ele faz parte do conflito. Mas um e outro traçam os mesmos paralelos: Israel colonial tem muito da África do Sul da segregação racial e da Jugoslávia da limpeza étnica. Só que o mundo aplica a Israel outros pesos e outras medidas. "Na África do Sul", observou Bishara, "os africânders consideravam-se como 'um povo e uma nação à parte, ocupando a terra dos seus antepassados, (...) falando uma língua dada por Deus (...), e destinados por Deus a reinar [nessa terra] para civilizar as populações pagãs." David Ben-Gurion, o pai-fundador de Israel, numa carta que enviou ao filho, em 1937, dizia: "Correremos com eles [árabes] e ocuparemos o seu lugar." Golda Meir ficou ainda mais célebre ao declarar: "Não é como se dantes houvesse um povo palestiniano na Palestina. (....) Eles não existiam." Se não existiam, por que resistiram eles ao plano de partilha da ONU que dava aos judeus - apenas um terço da população da Palestina histórica - 55 por cento do território? Se não existiam, então quem eram as mais de duas centenas de habitantes que os grupos judeus Irgun e Lehi massacraram na aldeia de Deir Yassin em 9 de Abril de 1948? Quem vivia em Safsaf para que Joseph Nchamani, alto-dirigente do Haganah (que precedeu o exército israelita), tivesse escrito: "Eles separaram as mulheres dos homens, amarraram as mãos a 50 a 60 camponeses e mataram-nos, enterrando-os numa vala comum. Também violaram muitas mulheres. (...) Em Salha, que tinha igualmente erguido a bandeira branca, cometeram um verdadeiro massacre."Benny Morris, um dos pioneiros da "Nova História" de Israel, que publicou as confidências de Nchamani, "assassino sem lágrimas", sintetiza o que Gresh chama de paradoxo de Israel: "O sionismo tem sempre duas faces. Uma primeira, construtiva, moral, pronta ao compromisso; e uma outra destrutiva, egoísta, militante, chauvinista-racista. Ambas são sinceras e reais."Os palestinianos parecem conhecer apenas a segunda face, e é por isso que são tentados a comparar duas tragédias incomparáveis: o seu êxodo ("Nakba") e o Holocausto ("Shoah"). Judeus e árabes estão prisioneiros de um "medo existencial" que os leva a negar o sofrimento do outro.Se é verdade que os palestinianos recusaram dividir o seu espaço com os judeus e que exércitos árabes invadiram o recém-criado Israel, Gresh também evoca o que alguns ignoram e/ou evitam lembrar. Em 1937, perante a Comissão Peel, da potência mandatária britânica, Ben-Gurion disse: "Os que rejeitam a partilha do território têm razão porque este país não pode ser dividido, pois constitui uma entidade única, não apenas de um ponto de vista histórico, mas também geográfico e económico." Posteriormente, repetiria que os limites do Estado judaico seriam "determinados pela força das armas". Em 1948, admitiu que, "na grande maioria, eles [árabes] não nos querem combater".Quando "David [Israel] venceu um Golias [árabes] de pés de barro", segundo a expressão de Gresh, o Estado judaico estendia-se por cerca de 78 por cento da Palestina - um território muito mais vasto do que o previsto no plano da ONU. E quanto "à mentira" de que Israel sempre procurou a paz com os vizinhos árabes mas não terá encontrado correspondência, Gresh frisa que Ben-Gurion recusou sempre qualquer concessão territorial argumentando: "[Queremos] a paz em troca da paz."Entre 1949 e 1951 (ano em que foi assassinado por um palestiniano), o emir da antiga Transjordânia, Abdallah, propôs diversos compromissos. O ministro israelita dos Negócios Estrangeiros Moshe Sharett respondeu invariavelmente: "Também queremos a paz, mas não é preciso correr, basta andar." Em 1949, antes de ser derrubado e executado, também o líder sírio Hosni el-Zaim ofereceu a Israel uma paz oficial com abertura de embaixadas, mas pediu, em troca, algumas concessões no que respeitava à água e território. Ben-Gurion rejeitou estas propostas e até uma cimeira com o dirigente de Damasco. Também com o Egipto do rei Farouk e do Presidente Nasser houve negociações secretas, mas "é uma evidência que Israel não 'correu' atrás da paz", esclareceu Gresh.Outra "mentira" que Gresh denuncia é a da "generosa oferta" feita por Ehud Barak a Yasser Arafat nas negociações de Camp David, em 2000, patrocinadas pelo então Presidente dos EUA, Bill Clinton. A expressão "oferta generosa" já "traduz a visão de uma paz imposta pelo mais forte ao mais fraco". Mas o que foi proposto? Um Estado palestiniano com soberania limitada, com a vida do ocupado subordinada ao ocupante; a Cisjordânia dividida em três partes por dois grandes blocos de colonatos e anexada em 9,5 por cento; cerca de 10 por cento, ao longo do rio Jordão, alugados a "longo prazo" a Israel, que controlaria também as fronteiras externas; nenhuma solução para os refugiados palestinianos; partilha de Jerusalém Oriental sem definir a parte que pertenceria a cada um.Camp David (que Bishara explica detalhadamente com mapas) foi um "fracasso parcial", sublinhou Gresh. Ainda houve negociações em Taba, mas os palestinianos que viram Barak construir mais colonatos e retirar menos soldados que qualquer um dos seus antecessores perderam a esperança e revoltaram-se sem piedade. E os israelitas, indignados com o que viam como a insensibilidade de Arafat perante os seus temores, vingaram-se elegendo Ariel Sharon.Bishara, que denuncia ao pormenor o tratamento indigno dos palestinianos de Israel (são "cidadãos de segunda ou terceira categoria") e justifica a sua oposição aos Acordos de Oslo (processo de "dependência" dos territórios ocupados), vê as mudanças de governo em Israel (seis desde a Conferência de Madrid em 1991) como a prova de que o Estado judaico "não pode viver em paz na sua realidade colonial, nem sair dela". As razões pelas quais Shamir, Rabin, Peres, Netanyahu e Barak caíram "são as mesmas que farão fracassar os seus sucessores: a incapacidade de garantir a paz e a segurança aos israelitas que querem a paz sem terem de pagar o seu preço".A solução de Bishara: "Ambos os povos precisam de acalentar o sonho de um futuro comum e próspero e abandonar os sonhos de um direito exclusivo à terra. (...) Se uns e outros tiverem de se separar, que isso seja apenas uma etapa temporária no caminho da reintegração. Talvez o destino desses dois povos seja viverem juntos. Se não, que o seu divórcio seja um divórcio justo."Aviso de Gresh em tempos de suicídio colectivo: Sansão, herói bíblico na luta do seu povo contra os ocupantes filisteus, feito prisioneiro pelos inimigos que o cegaram, tacteia as colunas centrais sobre as quais assentava o templo. Apoiou-se nelas, o braço direito contra uma e o braço esquerdo contra a outra, e disse: "Morro com os filisteus." Empurrou com toda a força e o templo desmoronou-se sobre os tiranos e todo o povo que lá se encontrava. Foram mais numerosas as mortes que provocou com a sua morte do que aquelas que fez ao longo da vida.

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