Cientistas vêem um sistema solar bebé
Quando olharam para as imagens captadas por um telescópio no Chile, o que uma equipa de astrofísicos viu, já na rotina dos seus gabinetes na Alemanha, parecia mesmo um disco voador. Por isso, foi o nome que deram ao disco de poeiras e gases que descobriram por acaso. Naquele disco cheio de matéria, que orbita uma estrela, irá formar-se um sistema solar. Disso parece não haver dúvidas e os cientistas apanharam-no quando ainda é bebé, acaba de anunciar o Observatório Europeu do Sul (ESO).Não é a primeira vez que se capta um disco de poeiras e gases onde surgirão planetas - o que se chama um disco protoplanetário. Isso aconteceu em 1984, quando foi descoberto o primeiro sistema planetário em formação (este já adolescente), em volta da estrela Beta Pictoris, a 70 anos-luz da Terra. Depois disso, foram detectados e observados com nitidez menos de dez discos protoplanetários, conta João Alves, de 33 anos, astrofísico português do ESO, uma organização europeia de astronomia com sede em Garching, perto de Munique (Alemanha). Só que todos esses discos em torno de estrelas encontram-se dentro dos berçários das estrelas e planetas - as nuvens escuras, com quantidades brutais de partículas minúsculas. Nesses berços, a matéria começa a contrair-se e, em algum momento, transforma-se em estrelas. Ou seja, iniciam-se as reacções termonucleares nestas fornalhas do Universo, em que os átomos de hidrogénio se fundem e dão hélio, e por aí fora, até formar elementos mais pesados, e o objecto brilha. Agora, e pela primeira vez, os cientistas viram um disco protoplanetário nas franjas de uma nuvem escura. "Está nos arrabaldes. Está completamente fora do ninho, em paz e tranquilidade, vagueando pelo espaço. Os outros estão todos dentro de uma nuvem escura", diz João Alves.João Alves e Nicolas Grosso - do Instituto Max-Planck para a Física Extraterrestre, também em Garching, o principal autor do trabalho - nem andavam à procura destes discos. Procuravam outros objectos, anãs castanhas, e para isso foram fazer observações, em Abril de 2001, para o New Technology Telescope, um telescópio do ESO no Monte La Silla, no Chile. Olhavam para a periferia da nuvem escura Ró Ofiúco, a 500 anos-luz da Terra (o que significa que a luz agora captada dessa região do Universo foi emitida há 500 anos, quando, por exemplo, Pedro Álvares Cabral fez o achamento do Brasil, e levou esse tempo todo a chegar cá). Mas a descoberta só foi feita no regresso a Garching, quando os cientistas analisavam os dados. "Quando saem do telescópio, os dados são 'brutos' e não se vê quase nada até que se fazem complexas, e entediantes, análises de imagem", conta João Alves. Os astrofísicos depararam-se, por acaso, com um estranho objecto, que, afinal, viria a revelar-se ser o disco protoplanetário.Aquela imagem, porém, não era muito nítida. Para confirmar o achado, fizeram-se mais observações, em Agosto - desta vez no Very Large Telescope, no Monte Paranal, Chile, que é o melhor telescópio óptico e infravermelho do mundo. A imagens já são nítidas. Nicolas Grosso lembra, num comunicado do ESO, as primeiras impressões quando ele e João Alves viram o objecto nessas imagens: "Olhámos um para o outro e, em uníssono, decidimos dar-lhe a alcunha Disco Voador!"Por ora, sabe-se que o disco orbita uma estrela jovem, um adjectivo que aqui quer dizer um milhão de anos, e com metade da massa do Sol. Mesmo assim, é mais velha do que as sete estrelas da nuvem escura Ró Ofiúco, que têm cerca de 100 mil anos. Nos arredores da nuvem, o séquito de poeiras e gases que acompanha a estrela mais velha atinge um raio de 45 mil milhões de quilómetros. É desse séquito de matéria que nascerão planetas. "É um sistema solar bebé."Como é que de um disco destes nasce um sistema planetário organizado? As poeiras tendem a aglomerar-se em grãos e depois em blocos maiores, que acabam por se entrechocar até que alguns ficam bastante grandes, atraindo os gases e formando planetas gasosos como Júpiter. Outros não passam de planetas pequenos, rochosos como a Terra, ainda que hoje não se consiga detectá-los noutros sistemas solares. Neste caso, não há dúvidas que nascerá um sistema planetário. Uma das razões é o disco ter matéria suficiente. Tem, na hipótese mais baixa, duas vezes a massa de Júpiter, e os modelos teóricos indicam um mínimo de uma massa daquele gigante para nascer um sistema planetário. A outra razão é estar longe das estrelas do berço. Há quem defenda que os aglomerados de estrelas mais maciças que o Sol destroem os discos, por emitirem muita radiação ultravioleta. Os berços de estrelas são locais violentos. Por isso, diz essa corrente de pensamento, a maior parte das estrelas nunca terá planetas. A Terra e os outros oito planetas seriam raros, nesta perspectiva. Outra linha de pensamento defende que, embora os discos sejam afectados, não são destruídos.Ora no caso do disco agora descoberto, o problema da destruição nem sequer se põe, por estar longe da turbulência do berço. "A possibilidade de ser afectado por radiação ultravioleta de uma estrela com muita massa é pequena, porque saiu do ninho e está a vaguear pelo espaço." Por outras palavras: "Está condenado a formar planetas", diz João Alves. Esta descoberta contribui para explicar porque estamos aqui neste pontinho azul, cheio de mar. Porque mostra que, pelo menos, alguns discos sobrevivem. "A minha opinião é que a maior parte das estrelas têm planetas, mesmo que alguns dos discos sejam destruídos na infância", afirma João Alves. Até pode ser que, neste disco, já lá estejam os embriões dos planetas. A equipa, que inclui outros cientistas, e submeteu o trabalho para publicação na revista "Astronomy & Astrophysics", fez um modelo que procura reproduzir a imagem do disco. "O modelo diz-nos que os grãos de poeiras são maiores do que os da nuvem escura. Ou seja, algo já aconteceu neste disco que está a transformá-los em coisas maiores. Pode ser um disco com imensas pedras, calhaus ou coisas maiores. Mas não somos capazes de detectá-los ainda", conta. Mas há tempo para procurar essas pedras: "O disco vai desaparecer em menos de cinco milhões de anos, para dar lugar a um sistema planetário jovem com proto-terras e proto-jupitéres, e uma quantidade enorme de 'calhaus' de massa mais pequena", remata o astrofísico.