Amor é fogo que arde...

Crítica ao romance de estreia de Frederico Lourenço, numa colaboração entre a revista online "Storm-Magazine" e o Mil Folhas.

Nuno Galvão, professor universitário, é apresentado ao leitor, nas primeiras linhas de "Pode Um Desejo Imenso", como "alto, magro, na véspera de fazer quarenta anos e considerado atraente por colegas e alunas". Um homem banal, em suma, mesmo quando relacionado com o título do romance. O que o torna diferente não é a óbvia consciência da passagem do tempo e as suas devastadoras consequências, mas sim a inegável qualidade de transpor a arte para a vida. É com Camões (e com Ovídio, Homero, Eurípedes, etc.) por ele e através dele que constrói a sua existência, o que cria uma inevitável e fatal esquizofrenia em relação ao universo da faculdade, dos amigos, da família e da vida quotidiana, principalmente quando se desenha no horizonte a figura apolínea do jovem Filipe Vaz, seu aluno de eleição, belo como uma estátua grega, tímido e sensível como um felino, mas incomodamente flanqueado por uma Patrícia maternal e protectora, namorada conveniente, como foi para o jovem D. António de Noronha, no século XVI, D. Margarida da Silva, filha de Garcia de Almeida, segundo Wilhelm Storck na sua "Vida e Obra de Camões", devidamente citada pelo autor. Assim, Nuno Galvão, professor carismático e envolvente, está prestes a apresentar uma comunicação num colóquio internacional de estudos camonianos, para onde convergem os doutos (e assaz aborrecidos, à maneira de David Lodge) especialistas na matéria. O título do seu "paper" é: "Camões e D. António de Noronha. Ecos Homoeróticos nas Rimas". O tema não é aceite com entusiasmo, o que é perfeitamente convincente, uma vez que o meio académico não aplaude, necessariamente, temas "ousados", como a homossexualidade, sobretudo se for aplicada a uma figura tão emblemática, em termos de identidade nacional, como Camões. A tese de Nuno Galvão, que leva a cabo uma pessoalíssima descodificação das rimas do grande poeta no sentido de desvendar a sua paixão pelo jovem pupilo, D. António de Noronha, causa grande comoção entre os seus pares, à medida que se desenrola a revelação do amor de Nuno por Filipe em que "um desejo imenso" (Camões, Ode VI) alia o erotismo, o amor e a poesia.Partindo de uma alusão inscrita na obra referida de Storck, Nuno desenvolve a teoria de que dois sonetos, duas elegias, uma ode, uma canção e três éclogas, tradicionalmente dedicadas a um senhor, D. António de Noronha pai, têm afinal em mente D. António de Noronha filho, o jovem fidalgo cuja morte prematura o encheu (a Camões) de "profundíssima mágoa", uma vez que com ele "estreitara e atara relações tão íntimas". Assim, os versos arrebatados e pungentes de Luís Vaz seriam dedicados, não ao velho fidalgo mas sim ao jovem D. António, que pereceu em Ceuta com o resto da fina-flor de Portugal, deixando inconsolável o nosso bardo. É partindo desta base homoerótica - um termo que Nuno explica ao pai, recordando-lhe a raiz grega, "hómoios", semelhante a eros, amor - que o professor Galvão tenciona abanar a paz podre da universidade onde todos os anos voltam as mesmas almas com as mesmas e estafadas teorias. Sabemos bem - mesmo quando queremos a ilusão do amor como conceito universal sem restrições de género, idade, raça, estado ou circunstância - que o mundo de Camões era essencialmente masculino. Os "Lusíadas" são dedicados ao jovem rei D. Sebastião e tudo está envolto na força viril dos mancebos que lutam em Ceuta ou cruzam os mares a caminho da Índia e da aventura, nas suas belas montadas e reluzentes armaduras, prontos para serem ceifados pela Morte. As mulheres, para além das loucas ninfas da Ilha dos Amores que são menos reais do que as "brincadeiras" eróticas dos soldados do Gama, aparecem sempre como "musas" no sentido clássico do termo, ou como figuras protectoras, como acontece em "Pode Um Desejo Imenso" - em que Helena é a amiga e cúmplice, Sofia, a irmã/mãe e a já referida Patrícia, a incómoda imagem feminina que segue o belo Felipe, como uma sombra. (De notar os nomes "clássicos" das intervenientes, sendo Nuno, tal como Camões, órfão de mãe.) A ardência da paixão (desértica, até à aproximação do oásis chamado Filipe) consome Nuno Galvão numa doce tortura que a poesia imprime ao Amor. Tudo é fogo nessa busca persecutória, enquanto ele próprio é perseguido por um Luís Vaz que, literalmente, faz "explodir" a sua líbido em versos de uma beleza perfeita, arrebatadora e infinita. Todas as etapas do reconhecimento amoroso estão lá e aqui, nesta tese feita romance: a impossibilidade do amor - "a evidência cristalina de ser 'impossível' devido a um motivo esmagador, porque ele era professor e Filipe, aluno" (pág. 28); o "sentimento persistente de irritação, de melancolia, de hipersensibilidade em relação à presença de outras pessoas" (pág. 65); o "veneno" que se instala e que o faz desejar a fuga a "esse estado crepuscular", para se embrenhar definitivamente na noite/morte (pág. 70); o reconhecimento de uma marca de fogo impressa na alma, própria de um homem apaixonado (pág. 71). Na obra-prima de Thomas Mann, quando Gustave Aschenbach chega a Veneza e tem, pela primeira vez, a oportunidade de contemplar o jovem Tadzio, essa visão arrasta-o para uma dissertação desesperada sobre a força de Eros e o seu maior inimigo, o Tempo. Gustave/Mann pondera sobre "a harmonia misteriosa que subsiste entre o ser humano e a ordem universal, para que a beleza humana resulte". E, daí, "passa para os problemas gerais relacionados com a forma e com a arte", (para) chegar finalmente à conclusão de que o que a ele se lhe afigurava como pensamentos frescos, originais e felizes não passava de invenções diáfanas de um sonho que ao acordar provassem ser inúteis e inconsistentes". ("Morte em Veneza", Thomas Mann).Mann, como bom discípulo de Goethe, conhecia bem os meandros traiçoeiros da erosão do tempo, da inevitabilidade da morte, da emoção da beleza fugidia, tal como Camões, que tornou o seu "engenho e arte" uma temível arma contra o esquecimento e o sonho vão. Frederico Lourenço em "Pode Um Desejo Imenso" coloca uma questão e tenta uma resposta em que a arte e a vida se confundem. O final não satisfaz completamente e o problema continua insolúvel. Talvez porque, como disse um poeta árabe, "Todas as rosas são vítimas do Inverno".*directora da "Storm-Magazine"

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