"O Delfim", um livro para a história
Sobre o seu "romance enigmático", conforme lhe chamou, disse José Cardoso Pires: "Em 'O Delfim', despistei-me numa sucessão de planos dialéticos". Trinta e quatro anos depois do lançamento do livro, a frase seria, por si só, suficiente para que algum investigador afoito se entretesse a escrever uma tese sobre os benefícios do despiste na literatura. Apesar dele, ou precisamente por sua causa, "O Delfim" sobreviveu ao seu tempo e às contingências históricas da sua própria metáfora. Transformou-se em filme e, acima de tudo, é hoje uma obra de referência. "Um belo romance, um dos melhores da literatura portuguesa contemporânea", diz o escritor António Alçada Baptista."'O Delfim' continua a ser considerado entre nós como um dos romances mais importantes do século XX, mantendo intacta a sua limpidez e actualidade", concorda Lídia Jorge. "Foi um livro fundamental pela inovação estilística, que afastou definitivamente José Cardoso Pires da cartilha do neo-realismo", acrescenta a também escritora Inês Pedrosa, que escreveu uma biografia sobre o autor. "Tem hoje um lugar muito nítido, e obviamente privilegiado, na literatura de ficção do nosso século XX", conclui também o ensaísta Eduardo Prado Coelho na "Introdução" que escreveu para a reedição do romance, na D. Quixote.Se resulta claro que "O Delfim" tem lugar assegurado num putativo panteão das letras nacionais, o romance de Cardoso Pires entrou ali por diversas portas. Antes de mais, e segundo Lídia Jorge, pela "secura impecável da escrita, a forma anglo-saxónica de depurar a linguagem até ao osso". "Na sátira 'Dinossauro Excelentíssimo', José Cardoso Pires diz que os lentes de Coimbra passavam os dias a pentear parágrafos. Curiosamente José Cardoso Pires era ele próprio um penteador de parágrafos, e n' 'O Delfim' levou esse mester à mais elevada potência: penteou parágrafos e limou as costuras daquele impressionante tapete de retalhos beneditinamente cerzido. Mensagem política não faltava na literatura neo-realista de então. A diferença, marcou-a Cardoso Pires com esse trabalho de verdadeiro esteta", analisa Onésimo Teotónio de Almeida, escritor e professor na Brown University, em Providence, Rhode Island (EUA).Por outro lado, "O Delfim" fez História na sua própria época, seja por constituir uma crítica metafórica do regime, seja por ser, de certo modo, uma narração do declínio deste. "É a metáfora de uma cultura que estava realmente no fim", considera António Alçada Baptista. "Abre as entranhas do fascismo e mostra de que forma ele contamina o quotidiano das pessoas, de que forma ele corrompe as relações entre homens e mulheres", acrescenta Inês Pedrosa.Malgrado essa marca de água política, "O Delfim" conseguiu, segundo Lídia Jorge, "flutuar acima do tempo e desprender-se da cama ideológica e estética de onde provém". Um facto que a escritora atribui a "uma realidade inapreensível" e, mais concretamente, ao facto de José Cardoso Pires ter "encomendado a escrita da sua obra a uma personagem singular, um escritor-caçador visitante, e com esse olhar ter obtido o triunfo de um poderoso ponto de vista". "A partir daí, o que poderia ter sido apenas mais uma história realista de denúncia social sobre a decadência das estruturas feudais portuguesas, transformou-se numa narrativa congeminada no seio da subjectividade, do onírico, do trabalho fragmentado da memória, da composição circular e da tensão operática dos grandes temas recorrentes", explica a autora de "Notícia da Cidade Silvestre".Prova desta superação será o facto de "O Delfim" servir de referência aos escritores das novas gerações, como Inês Pedrosa ou José Luís Peixoto, vencedor do Prémio José Saramago. "O que mais me maravilhou foi a enorme quantidade de registos, ou seja, a grande riqueza da escrita de José Cardoso Pires: as citações da monografia imaginária sobre a Gafeira, os diálogos, o caderno de apontamentos do escritor e narrador, as descrições da lagoa... A forma como todos estes registos são geridos é um momento singular da literatura portuguesa e um trabalho de verdadeiro génio", diz o jovem autor de "Nenhum Olhar".Lídia Jorge fala também de um "sopro de genialidade": "José Cardoso Pires sabia que esta era a sua obra inultrapassável". Eventualmente, saberia também que, ao contrário de Palma Bravo e Maria das Mercês, este seu romance era tudo menos estéril - e que continuaria a frutificar.