Morreu o escritor e diplomata Álvaro Guerra

O escritor, diplomata e jornalista Álvaro Guerra morreu, na madrugada de ontem, na sua residência de Vila Franca de Xira, cidade que o viu nascer a 19 de Outubro de 1936 e com a qual manteve sempre uma forte ligação. Vítima de problemas cardíacos que o debilitavam há já algum tempo, o autor preparava-se para publicar mais um romance, seguindo uma linha que ao longo da vida o levou a passar ao papel sentimentos da sua vivência em vários pontos do mundo. "Em momentos tristes como este, o que me apetece recordar em primeiro lugar é o amigo que se perde, um amigo de bastantes anos e de largos convívios, um amigo leal e generoso, cuja perda nos deixa uma profunda tristeza", confessou ao PÚBLICO Nélson de Matos, das Publicações Dom Quixote, editor de longa data de Álvaro Guerra.Álvaro Manuel Soares Guerra ficou sobretudo conhecido pela publicação, na década de 80, da chamada "trilogia dos cafés" - "Central", "República" e "25 de Abril" - onde, a partir de conversas desenvolvidas no mais "castiço" café de Vila Franca, relatou fases marcantes da História de Portugal vividas numa vila ribatejana. A sua obra literária iniciara-se, contudo, na década de 60, com a publicação de dois livros, o primeiro dos quais, "Mastins", foi prefaciado pelo também escritor vila-franquense Alves Redol. Antes, revelara já a sua forte oposição ao Antigo Regime e exilou-se em França, depois de sofrer algumas perseguições de agentes da PIDE. Frequentou, então, a École des Hautes Études da Sorbonne, onde enriqueceu a sua experiência cultural. Também por isso, as suas duas primeiras obras foram rapidamente traduzidas e publicadas em francês. Regressou, entretanto, a Portugal, onde prosseguiu as suas actividades literária e jornalística, colaborando no "República", jornal opositor do regime, e envolvendo-se na fundação do vespertino "A Luta". "Para além de grande escritor", acrescenta Nélson de Matos, "ele foi também um homem de forte intervenção cívica. Não tenho a certeza, mas o Álvaro Guerra talvez tenha sido dos poucos portugueses que soube do 25 de Abril antes de ele acontecer. Como jornalista do jornal 'República', ele fazia a ponte com os generais de Abril", recorda o editor.Após o 25 de Abril de 1974, Álvaro Guerra desempenhou funções de director de informação da RTP. Entre 1976 e 1977, foi assessor do então Presidente da República, Ramalho Eanes, que, em declarações à Lusa, afirmou: "Nesta longa e gratificante relação, constatei ser um cidadão disposto a combates em todas as boas causas".Iniciou, depois, uma carreira diplomática que o levou a representar Portugal na antiga Jugoslávia, de 1977 a 1984, experiência que o levaria a publicar o livro "Crónicas Jugoslavas", com o qual conquistou o seu mais importante galardão literário, o Grande Prémio de Crónica atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores. Na qualidade de embaixador passou, também, por locais como Nova Deli, Kinshasa e, mais recentemente, por Estocolmo, tendo ainda trabalho junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo.Álvaro Guerra assumiu sempre uma forte ligação às raízes culturais de Vila Franca e à própria tauromaquia. Recebeu a Medalha da Cidade e participava, quando podia, em algumas actividades locais. Foi o caso do recente Congresso Mundial de Cidades Taurinas, realizado em Vila Franca em Outubro de 2001, onde, na palestra de abertura, falando sobre o tema "A tauromaquia e a cultura", o escritor observou que "este conclave internacional das cidades taurinas é uma demonstração da vitalidade, de afirmação da diversidade cultural que é parte integrante da identidade de cada uma das terras aqui representadas, face à ameaça de uniformização, da rasoira brutal do dinheiro e da língua franca do progresso que melhora tudo menos o homem e a sua vida em sociedade".Sobre ele, José Jorge Letria escreveu, muito recentemente, no semanário local "Vida Ribatejana", que "além de ser uma das vozes mais importantes da ficção narrativa portuguesa contemporânea", Álvaro Guerra possuía também um forte sentido de fraternidade e uma fina ironia, e que "a sua cultura cosmopolita e, ao mesmo tempo, profundamente enraizada na memória local que tão grata lhe é", são "o elemento estruturante de uma identidade que marca os momentos fulcrais do seu percurso como homem". Para a posteridade deixa um romance inédito e "completamente concluído", diz Nélson de Matos, intitulado "No jardim das paixões extintas", que será publicado no próximo mês de Junho. Confirmada pela Dom Quixote está também a reedição em formato de bolso da "trilogia dos Cafés", que se prevê para breve. O corpo do escritor foi ontem colocado no Celeiro da Patriarcal de Vila Franca, um antigo edifício setecentista situado no centro da cidade, utilizado nos últimos anos para actividades culturais. Seguirá hoje, às 13h15, para o cemitério do Alto de São João, onde será cremado. *com Tiago Luz Pedro

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