Hamlets há muitos...
A que se deve a tentação insaciável de representar "Hamlet", que é um príncipe, é certo, mas, afinal, também é um homem incapaz de decidir e agir, e um fraco candidato a herói?
É a mais enigmática das personagens shakespearianas. Desde o seu nascimento, em 1600-01, foi sendo lida e representada à luz de diversas concepções do ser humano e de estéticas teatrais. Dos míticos John Gielgud (em 1930) e Lawrence Olivier (em 1937), actores que deram a Hamlet um corpo e uma imagem carismáticas, às modernas encenações, como a de Antoine Vitez (1983), Robert Wilson (1993) ou Robert Lepage (1996), com o cunho autoral que caracteriza as releituras dos clássicos a partir de meados do século XX, muitas são as versões da tragédia do reino da Dinamarca. Raro será o actor que não acalente o desejo de a representar ou o encenador que não ambicione revelar o que nela vê. As figurações de Hamlet são fruto de novos olhares sobre o que hoje entendemos serem os clássicos da literatura dramática ou da forma como os textos de Shakespeare nos devolvem uma visão universalista (em rigor, ocidental) do homem e se relacionam com os vários momentos presente em que vive. Para além de ostentar a paternidade shakespeariana, qual será a razão pela qual Hamlet, personagem cheia de indefinições, suscita tanta produção ensaística e inspira incontáveis desafios de representação?Uma primeira explicação poderá residir no facto de Hamlet ser emblemático de um processo que todo o ser humano vive diariamente: o conflito interior. Seja ele deputado, artista ou cozinheiro, mulher ou homem, herói ou Zé Ninguém qualquer mortal se confronta com escolhas e indecisões. Hamlet é o protagonista do conflito entre o pensar e o agir, entre o racional e o emocional, entre o esperar e o intervir. Como não nos identificarmos com um conflito que, por excelência, é a nossa batalha mais quotidiana e mais metafísica ao mesmo tempo? Este dado comum a todos os seres humanos, a universalidade do conflito interior, está na base da segunda encenação de "Hamlet" por Peter Brook (a primeira fora em 1955), levada à cena em 2001 no Théâtre Bouffes du Nord, em Paris. Hamlet era interpretado por um actor negro (Adrian Lester) e a encenação enfatizava um espaço despojado de cenografia e o trabalho de intérprete cuja responsabilidade máxima era não tanto a relação com o texto (a directriz era a de esquecer que se tratava de Shakespeare), mas a de dar vida a seres humanos. O efeito esponja. Jan Kott é o autor de "Shakespeare our contemporary", obra escrita em 1960 que teve enorme influência na Europa relativamente ao modo como este dramaturgo foi revisto e actualizado a partir de então. Kott apresenta (no ensaio "Hamlet today") uma justificação para as múltiplas leituras de Hamlet: o efeito esponja. Tal como este material, a personagem absorve os olhares, motivações e identificações daquele que com ela se confronta. Isto significa que muito pode ser dito e concebido em torno dela, mas que nem tudo estará na composição dramática de Shakespeare, que é o que na realidade se mantém depois de espremida a esponja.Hamlet é permeável e moldável por tantos quantos o queiram habitar. É uma personagem aberta, uma estrutura que hospeda projecções arquitectónicas, visões de casas possíveis de construir que cada um decora com o gosto, as tendências e os afectos que o definem. O que é curioso é que, se por um lado, Hamlet ganha vida parasitando a individualidade de quem o olha, por outro, cada actor ou encenador encontra nele amplo espaço de construção de uma identidade ou de uma leitura do mundo que é sua - mais do que da personagem. Tal afirmação será redutora, mas poderá sugerir uma explanação possível para a tentação insaciável de representar "Hamlet", uma aspiração maioritariamente masculina.O anti-herói. Hamlet é um príncipe, mas sendo um homem incapaz de decidir e agir, é um fraco candidato a herói pois não corresponde aos cânones da valentia, coragem e intrepidez.. Esse é, se quisermos, o seu lado trágico. E fatal. Depois da aparição inicial do fantasma do pai assassinado que lhe vem pedir vingança da sua morte e traição, Hamlet demora-se em toda a tragédia em pensamentos e hesitações que o paralisam. Só no final, o duelo com Laertes (que o propõe) proporcionará a morte do tio (Cláudio) que casara com a rainha (Gertrude), sua mãe, fazendo da vingança, que se deveria comer fria como qualquer acto premeditado, um produto do acaso ou, no limite, de uma reacção emotiva. O conflito interior que ocupa Hamlet será resolvido não pelo pensamento que sustentaria a decisão, mas por um impulso que em nada condiz com a honra heróica do cavaleiro nobre. Por isto T. S. Elliot afirmaria polemicamente que o problema de Hamlet não é a complexidade da personagem, mas a própria peça de Shakespeare, que, segundo ele, é uma obra falhada na medida em que o texto não resolve as questões que levanta. Há, porém, quem veja Hamlet como herói. Ou melhor, há um encenador que nos anos 90 procurou numa figura heróica da sociedade contemporânea ecos de um mito actual: o cantor rock. Em 1997, Eimuntas Nekrosius convidou um dos cantores rock mais populares da Lituânia, Andrias Mamontovas, para interpretar a personagem. E foi com o corte de cabelo punk, voz rouca, brinco na orelha e, sobretudo, com alguém sem os clichés de quem está habituado a pisar um palco, que Nekrosius quis o seu Hamlet. Na linha das produções do mesmo encenador que o PONTI trouxe a Portugal ("Três irmãs" e "Macbeth"), este espectáculo superava as deficiências técnicas do actor que nunca o fora com uma dimensão visual e acústica (a omnipresença de um bloco de gelo suspenso e da composição musical) que acentuava uma tragédia existencialista, no tom de rebeldia ruidosa própria do rock.O louco. A loucura é outro dos aspectos que envolve a personagem Hamlet. Nunca se chega a perceber até que ponto a sua conduta é intencional e, portanto, funciona como uma estratégia de distracção para atingir os seus fins (descobrir a veracidade da culpa do tio usurpador e vingar-se) ou se, pelo contrário, a sua loucura é sintoma do conflito em que se encontra. No entanto, o seu discurso, diz-nos Claudio, mantém-se coerentemente irracional, tal como é avisada a sabedoria do verdadeiro louco.Como forma de paralisia e isolamento do mundo circundante, a loucura prefigura-se em Hamlet como um vínculo com a impotência e como alienação. Não age no mundo aquele que não lhe pertence, o que se pode entender como fatalidade ou como mera atenuante da incapacidade de tomar a acção. A Sociètas Raffaello Sanzio (companhia italiana que esteve recentemente na Culturgest com o controverso espectáculo "Voyage au bout de la nuit") fez, em 1992, uma leitura extrema da alienação de Hamlet: converteu-o num autista, destituído de discurso, do poder da palavra que, em Shakespeare, surge como um dos seus traços magnânimos. Esta encenação, assinada por Romeo Castellucci, transporta para uma sala não convencional, cuja implantação cénica se aproxima da instalação (elementos metálicos e lâmpadas em formas de "mais" e de "menos", suspensas ou no chão), um único actor (Paolo Tronti) que dirá apenas as palavras "love me". A impossibilidade de comunicação com o mundo segue de perto a problematização hamletiana do ser e do não ser (do teatro ou do não teatro) e dá lugar à anulação do ser através do corpo, que recua até à forma de molusco no útero materno (recorde-se o título: "Amleto. La veemente esteriorità della morte di un mollusco").O intelectual andrógino. A imagem de um Hamlet cortesão, vestido de preto, esbelto e erudito, melancólico, frágil e afeminado ficará no nosso imaginário marcada pela interpretação de Olivier, sobretudo a partir da sua versão cinematográfica em 1948. No entanto, esta figuração tem outros antecedentes: uma ambígua relação com a sexualidade e a construção de um arquétipo de intelectual isolado na sua torre de marfim. Há em Hamlet uma misoginia velada que se evidencia, por um lado, na relação de amor/ódio com Ofélia (e, por extensão, com o sexo feminino), e, por outro, como consequência de um complexo de Édipo, que o próprio Freud tomou como exemplo. O texto mantém uma ambiguidade a este respeito: não sabemos qual o verdadeiro sentimento de Hamlet para com Ofélia; imaginamos apenas que a aversão que em certos momentos demonstra poderá ser um reflexo da emotividade sobressaltada com que projecta em Gertrude, acusando-a de traição. Por certo, a raiva de Hamlet dirige-se ao tio na medida em que ele terá realizado o seu complexo recalcado: é Cláudio que mata o pai e casa com a rainha... Esta seria, nesta perspectiva, a causa de uma disfunção relativamente ao sexo feminino. Da misoginia a uma visão gay da personagem é um passo (ou um olhar), basta juntar-lhe a melancolia da hesitação e o lado sonhador para termos um retrato-robô do homem que quer ser mulher (como escreverá Müller em "A Máquina-Hamlet"). O que é interessante, e contraditório com esta visão estereotipada da sexualidade, é que a personagem é frágil e indecisa porque pensa. Pensa demais...É a partir de Goethe, com a obra "Whilhelm Meister Lehrjahre", dos ideais românticos do herói idealista (alma nobre de puro espírito), que advém uma contaminação da personagem Hamlet com a figuração do intelectual. Este intelectual, porém, está enredado pelos próprios pensamentos na prisão da sua inépcia, está isolado do mundo, apesar de ter consciência dos seus males. As dúvidas metafísicas, ponderadas ao longo dos monólogos que celebrizaram a personagem dão conta do poder discursivo, filosófico e irónico de Hamlet. As suas palavras são punhais, mas condenam-no ao adiamento das decisões. Neste sentido, encenar hoje um texto como Hamlet significa posicionar-se perante todas estas figurações, em particular perante a do intelectual romântico que, na verdade, é mais construção mítica do que prática. O intelectual como o entendemos a partir de Zola é aquele que intervém na sociedade, que toma partido. A sua importância e actividade principal reside no acto de pensar, numa "praxis" que é o seu modo de fazer pensando, aplicada a domínios profissionais variados. O intelectual não se concebe como um ser alienado e contemplativo do mundo em que vive; a reflexão é a sua estratégia de vida e a sua ética (talvez o seu sonho). No seu pensar é que está o seu agir.