"O que é que eu adoro? A comédia, as histórias de amor e conhecer pessoas"
Gérard Depardieu fala como filma - numa espécie de voragem bulímica, mantendo uma qualquer caprichosa engrenagem em acelerado funcionamento. Não é por acaso que, correspondendo a 37 anos de carreira, a sua filmografia inclui 150 títulos. E, confirma-se: também não é sem razões que a publicação "Hapless Dilettante" o tenha imaginado a dar uma valente tareia a Samuel Beckett caso, ressuscitado, o dramaturgo um dia batesse à porta da propriedade vinícola do actor, acordando-o, para lhe fazer uma entrevista.Em Sintra há perto de um mês em rodagens para duas produções televisivas - terminou há uma semana "Volpone", a partir da peça do inglês Ben Johnson, e está neste momento a braços com "Ruy Blas", a partir de Victor Hugo -, aquele que na década de 70 foi assumido como o porta-estandarte de um novo cinema francês insiste: um actor não é grande coisa.Tem vindo a reafirmar com frequência essa posição. Ainda não há muito tempo dizia sem evidenciar no tom qualquer traço de ironia: "Sou uma espécie de caixote-do-lixo do cinema francês. Eu, faço de tudo." Neste momento há em cartaz em Portugal três produções distintas que contam com a sua participação. "Astérix e Obélix: Missão Cleópatra", tomo dois da transcrição para cinema das aventuras dos heróis de Uderzo-Goscinny; a comédia "Sair do Armário/Le Placard", o seu quinto filme sob a direcção de Francis Veber; e ainda "Vidocq", euforia de efeitos especiais sobre o assassinato do famoso detective. Para alguém que já trabalhou com nomes como Marguerite Duras, François Truffaut, Maurice Pialat, Bertrand Blier, Alain Resnais ou Jean-Luc Godard poderá parecer pouco. Peões num programa de industrialização. Mas, isso é claro para Depardieu: são as regras de um jogo que aceita disputar. Quando fala dos projectos que actualmente assume parece mais concentrado em questões de política cultural - nomeadamente de afirmação da indústria cinematográfica francesa - do que nos seus desafios como actor.Sabe, eu já fiz 150 filmes. Não há desafios. Há belos encontros, com boas personagens e boas histórias para contar. Mas a performance do actor não é o que é mais interessante. Pelo contrário. O espírito de grupo... Uma obra... Um autor... Actuar é quase uma espécie de recompensa. Em teatro, vou fazer o "Otelo". "Otelo" será sempre "Otelo". É o ciúme, a traição, os afectos - grandes temas, que atravessam os tempos. Mas a performance do actor vem da energia do grupo e de um objectivo específico, que é o de montar um espectáculo.Oh... Não é grande coisa. É alguém que pode ter prazer e dá-lo aos outros. Sobretudo dá-lo aos outros. Os problemas de um actor não são o mais interessante, o que é importante e interessante é fazer passar um texto, um autor. O resto... O que anima um actor é a força de um autor, o conteúdo de uma obra. Poder ser o motor que dá a energia para que essas histórias estejam ali. Ponho-me ao serviço dos realizadores.E o facto de ter sido "Les Valseuses" - de Bertrand Blier (1974) - a funcionar para si como plataforma de afirmação profissional tem só a ver com isso?Não é de todo uma questão de falsa modéstia, mas o mais importante em "Les Valseuses" é realmente a época, e o que Bertrand Blier trouxe ao cinema francês dessa época. Saímos da Nouvelle Vague. Antes deste movimento havia filmes extremamente conformistas. Em 1968 houve aquele pequeno evento burguês que dinamitou um pouco as fronteiras - digo burguês porque nunca fui estudante, ia às barricadas para roubar as montras, não tinha nada a ver com as reivindicações... Mas, como digo, [o Maio de 68] agitou as coisas, nomeadamente as mulheres. Passámos de 36, do direito ao voto, a 68, à libertação das mulheres. Depois, em 1974 explodiu nas salas de cinema o "porno". Houve isso e o cinema italiano. Agora estamos num mundo de "voyeurs". Como em 1900 havia feiras em que se mostravam negros e tribos inteiras, em 2002 há os "Big Brother", os "Loft" e as "Academia de Estrelas". "Les Valseuses" de Bertrand Blier revelou-me, mas não é isso que interessa. O importante é o cinema.Precisamente. Estava à pouco a dizer que o actor era quem fazia a transmissão de energia entre os autores - realizadores - e o público. Para isso é preciso que participem dos processos mentais...Pois é. Mas quando os actores se explicam aborrecem-me. Um músico, quando me explica a sua música aborrece-me. Pelo contrário, se me emociona quando toca.. Voilá! Sinto-me muito tocado pela necessidade de existirem grandes actores como de grandes autores. É tudo.Entre os autores com quem teve oportunidade de se cruzar, houve pessoas com quem partilhou uma empatia especial. É o caso de François Truffaut, Maurice Pialat e Bertrand Blier. Pois, Maurice Pialat... Para mim ele é grande, é mais importante que o Jean-Luc Godard. O cinema do Godard às vezes aborrece-me, toca-me menos que o de Pialat ou o do François Truffaut. É como o Alain Resnais. Fez muito bons filmes, mas a sua maneira de filmar é triste - é como o Godard. Quando percebo que não faço mais que ser actor aborreço-me. Preciso de me rir das coisas. O Pialat não se explica, é o contrário do Godard. O Pialat, o Cassavetes, como o Renoir, não se explicam. Eles pegam nas coisas da vida e trabalham-nas. Eu não estudei, mas se tivesse estudado e se os professores se assemelhassem ao cinema de Godard! Bom, ainda bem que não estudei...Nesse caso, como é que foi trabalhar com ele em "Hélas Pour Moi!"?Foi óptimo. Fiz o meu trabalho. Ganhei imenso dinheiro - como, aliás, o próprio Godard. Foi como fazer publicidade a massas. O Godard é uma enorme referência, e não só para o contexto estrito do cinema, também para as artes plásticas, por exemplo.Ah! Para as artes plásticas. Isso sim, estou de acordo! É verdade que ele sabe filmar uma vaca, um avião, um campo. Tem um sentido de enquadramentos verdadeiramente espantoso. Mas é como muitos artistas contemporâneos, não há verdade lá dentro. Já foi feito, já foi dito, já foi visto. É como o Andy Warhol com as latas da Campbell. Toca-me menos que Braque, que Miró, que Tapiés... É uma questão de sensibilidades.Com Pialat - com quem fez "Loulou" (1981), "Sob o Sol de Satanás" (1987) ou, mais recentemente "O Miúdo" (1995) - os vossos processos de trabalho...Temos mais ou menos a mesma sensibilidade sobre as coisas da vida como sobre as coisas da morte. Temos a mesma sensibilidade sobre o sofrimento, sobre as reacções humanas. Com ele entendo-me muito bem, rio-me. Parece que há outros que sofrem imenso. Há muitas pessoas que dizem que o Pialat é monstruoso - eu gostava de ser monstruoso como ele é. Falava da importância dos autores. Há neste momento três filmes em cartaz em Portugal que contam com a sua participação...Faz parte da indústria do cinema. Existe e eu não me oponho a ela, muito pelo contrário. Aquilo a que me oponho é a existência de uma indústria apenas americana. Cerca de 88 por cento dos filmes no mercado internacional são americanos, resta uma muito pequena fatia de mercado para o cinema francês, o português nem sei. Esses três filmes de que fala são, precisamente, um painel de uma indústria.Na altura de estreia de "Astérix e Obélix contra César" pegou-se no filme como uma metáfora - o pequeno mercado gaulês contra o grande império americano. Exactamente. Há 15 ou 20 anos talvez não tivesse funcionado, hoje em dia corresponde a uma certa ideia de modernização, de resistência. O princípio da comédia é poder fazer rir com eventos que podem ser monstruosos - o Lubitsch, com "Ser ou Não Ser" sobre os guetos de Varsóvia, por exemplo. O cinema tem essa posssibilidade, é uma arte sublime, é um meio maravilhoso para retratar a vida, as coisas vivas, mas o cinema como objectivo não me interessa nada. "A Mulher do Lado" [1981, de François Truffaut] é um filme imenso porque é tudo o que eu adoro. O que é que eu adoro? A comédia, as histórias de amor e conhecer pessoas.