O paraíso dos tontos
Nova colecção de poesia da ASA vai ser apresentada em Serralves com o lançamento simultâneo de 22 títulos.
Onde seria desejável um confronto sereno, e segundo as regras do reconhecimento ponderado dos argumentos do outro, irrompeu uma polémica que tem tudo para servir mal a ciência, a cultura e aqueles para quem estes temas têm verdadeira importância. Refiro-me ao livro recente de António Manuel Baptista intitulado "O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência - Obscurantismo e Irresponsabilidade", publicado pela Gradiva. Eu considerava o autor um honesto e simpático divulgador da ciência contemporânea, capaz de falar sobre ela de um modo claro e aliciante, seja em livros, seja na televisão. Mas uma funesta deslocação a Castelo Branco levou um dos seus interlocutores a sugerir-lhe a leitura de um livro já antigo de Boaventura de Sousa Santos intitulado "Um Discurso sobre as Ciências". Tão forte foi o efeito de tal sugestão que logo solicitou à Comissão Organizadora do II Colóquio de Física do Instituto Politécnico de Tomar que alterasse o tema da sua intervenção, para se poder ao prazer de demolir o livro de Boaventura de Sousa Santos (que já vai na 12ª edição). Surgiu depois um editor, o meu querido amigo Guilherme Valente, que tão alvoroçado ficou com a referida comunicação que a quis publicar logo, do que resultou um livro marcado pela urgência, ofegante de ódio e indignação, manifestamente mal construído, escrito por vezes com os pés, mal pensado e mal informado, e ainda mal revisto (daí os erros de ortografia como "preversos" ou "regeitar" - ou será que a ortografia não é científica?). E é pena, porque haveria aqui matéria para um debate do maior interesse e pertinência.Gostaria de sublinhar um ponto, logo de entrada. Aceito por completo a minha total incompetência para tratar de questões de física ou de matemática ou de biologia ou de medicina. O que procuro saber é da ordem da formação intelectual privada - deixa-me entender alguma coisa, não me permite mover-me à vontade por dentro do discurso dos outros. Como o próprio António Manuel Baptista sublinha, a divulgação é sempre uma simplificação que fica muito aquém da pureza e autenticidade do que é a verdadeira ciência. Mas também faria gosto em que, quando alguém se ocupa de questões que não são da sua especialidade, o fizesse com um mínimo de esforço para as entender por dentro. O que desqualifica em grande parte os argumentos de Sokal e Bricmont é que eles se puseram a ler textos de psicanálise ou de filosofia sem terem a mínima ideia de que aquele tipo de discursos tinha uma história, uma consistência longamente elaborada, uma conceptualidade em gestação, e que não é começando a ler de repente que se pode entender o que neles está em jogo. Isto sucede até com a leitura dos jornais -, mas também se quisermos compreender um texto sobre tauromaquia ou sobre economia. Ora Sokal e Bricmont citam o que não entendem porque não fizeram o mínimo esforço para entender - e nenhuma atitude nos parece mais anticientífica. O mesmo acontece, em pior, com António Manuel Baptista: as referências a Serres, Latour, Lyotard ou Derrida são baseadas em citações de citações, e revelam um completo desconhecimento dos textos em causa.Mas vejamos as coisas ordenadamente. Repare-se que Boaventura Sousa Santos intitulou o seu breve texto "Um Discurso sobre as Ciências". António Manuel Baptista dá ao seu livro o título de "O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência". Onde estão as diferenças? São duas, pelo menos. Onde Boaventura usa um artigo indefinido ("um discurso", o que significa "um entre outros possíveis") António Manuel Baptista usa um artigo definido ("o discurso") e depois, uma vez homogeneizado o campo, atribui-lhe um adjectivo ("pós-moderno"). Donde, o leitor pensa que existe apenas um discurso pós-moderno, e que este é o de Boaventura de Sousa Santos.É verdade que António Manuel Baptista irá dizer, à laia de censura, que "parece difícil definir rigorosamente o que seja pós-modernismo", mas neste ponto terá de reconhecer que os conceitos de história da cultura (como "classicismo", "modernismo", "barroco", "democracia", "totalitarismo", etc.) são conceitos que têm uma história e que por isso mesmo não são nunca rigorosamente definidos. Dizer que se vai definir rigorosamente o "modernismo" só pode ser uma atitude tonta. No caso do pós-modernismo, chamaria a atenção para um aspecto essencial. Podemos e devemos reconhecer que existem motivos suficientes para considerarmos que nos últimos trinta anos alguma coisa mudou na estrutura das nossas sociedades e que seria útil encontrarmos um nome para tal transformação: fala-se em sociedade pós-industrial, sociedade da informação, sociedade hipertexto, modernidade tardia, hipermodernidade, modernidade reflexiva, sociedade global, segunda modernidade, sociedade em rede, etc. Todas estas designações têm a sua pertinência, mas a noção de pós-modernidade, sendo talvez a mais indefinida e discutível, é, por isso mesmo, a mais resignadamente consensual (atenção, meu caro amigo, esta frase pode parecer absurda, mas, se fizer um esforço, vai ver que não é). Pela minha parte, creio que temos de reconhecer que vivemos numa sociedade diferente a que podemos chamar "pós-modernidade", embora eu me sinta no interior dela muito mais próximo da defesa dos valores da modernidade do que daqueles que alguns pós-modernos dizem defender. Porque, repito, uma coisa é reconhecer uma mudança, outra coisa é converter essa mudança num programa a defender. Não consigo evitar a primeira, tenho sérias reservas em relação à segunda. Agora o que não aceito é a visão estilo "aventura dos cinco", que António Manuel Baptista nos dá, de um pequeno grupo de conspiradores pós-modernos pretendendo subverter as bases da civilização. Trata-se de uma caricatura ridícula. Quando António Manuel Baptista ler algo mais sobre estas coisas além de uns artigos em revistas verá que tem de distinguir entre pós-modernidade, pós-estruturalismo, desconstrucionismo, construcionismo social, neopragmatismo, multiculturalismo, pós-colonialismo e sociologia das ciências. Descobrirá com espanto que Derrida nunca se considerou pós-moderno, nem mesmo pós-estruturalista. Que Lacan também não, e julgo que morreu sem saber o que isso era. Que Serres ainda menos. Que Jameson é um marxista. Que existe um marxismo pós-moderno (o de Laclau e Mouffe, por exemplo). Que dizer que Lyotard é um "arquimoderno" é um puro disparate. E assim por diante.Descobrirá que se pode ser desconstrucionista e ferozmente realista em filosofia das ciências: é o caso de Christopher Norris, por exemplo, em "Against Relativism - Philosophy of Science, Deconstruction and Critical Theory" (Blackwell, 1997), onde encontra dois textos que lhe podem interessar especialmente: "Quantum Mechanics: a Case for Deconstruction?" e "Stuck in the Mangle: Sociology of Science and its Discontents". Descobrirá que se pode ser desconstrucionista e ler Derrida à luz de Niels Bohr: veja-se Arkady Plotnitsky em "Complementarity: Anti-Epistemology after Bohr and Derrida" (Duke University Press, 1994). Descobrirá a extensão da sociologia das ciências de hoje e as críticas sérias que lhe podem ser feitas: veja-se Michel Dubois, "La Nouvelle Sociologie des Sciences", PUF, 2001). E por aí fora. Descobrirá que (para utilizar uma das sua frases, daquelas frases perigosas que fazem sempre ricochete) que "o paraíso pós-moderno [não] é o paraíso dos tontos".E poderá começar a evitar certos dislates. Evitará o ridículo de dizer que comprou um dos meus livros porque se intitulava "A Mecânica dos Fluidos" - é como se um empreiteiro tivesse ido comprar à pressa o livro de poesia de Ruy Belo intitulado "O Problema da Habitação". Conseguirá coibir-se de pensar que tem a definição definitiva do termo "teoria". Começará mesmo a aprender a ler (tenho esperanças). Evitará assim o disparate (p. 56) de criticar Boaventura de Sousa Santos quando ele se limita a caracterizar o que designa como "o paradigma dominante" - é óbvio que a crítica não faz sentido porque Boaventura pensa precisamente o contrário daquilo que está a expor. Evitaria ainda concordar com Sousa Santos quando este, ao expor uma perspectiva fenomenológica para a sociologia, a vem criticar logo a seguir ("esta concepção revela-se mais subsidiária do modelo de racionalidade das ciências naturais do que parece"). Afinal António Manuel Baptista concorda com o que Sousa Santos expõe ou com o que Sousa Santos critica? Em todos estes planos revela-se uma precipitação que muitas vezes é apenas uma expressão da incapacidade de entender o que se leu e de reflectir sobre o que se entendeu.É pena, repito. Porque o diálogo é possível - e desejável. Pessoalmente, não partilho a distinção entre ciência moderna e ciência pós-moderna de Boaventura Sousa Santos (parece-me uma perigosa versão de uma "ciência burguesa-ciência proletária"), não creio que existam a priori paradigmas em ciência a não ser que se convertam em programas de investigação (não no sentido de Lakatos), e não vejo vantagem em estabelecer regras paradigmáticas a orientar o trabalho científico. Por outro lado, não acho útil que se enfraqueçam noções de tipo realista, e defendo sobretudo uma concepção da racionalidade que jogue na complementaridade possível (e, por vezes, impossível, sublinho) das diversas racionalidades - um pouco como propõe Stephen Toulmin nesse notável trabalho que é "Return to Reason" (Harvard University Press, 2001).