O dia um da eutanásia na Holanda
A Holanda tornou-se ontem o primeiro país do mundo a reconhecer a eutanásia como acto legal, com a entrada em vigor de uma lei aprovada em Abril do ano passado. A nova legislação autoriza doentes sujeitos a um sofrimento intolerável ou sem hipóteses de sobrevivência a solicitar a prática de morte assistida e isenta os médicos que a realizem de qualquer procedimento judicial, desde que cumpridos os rigorosos critérios previstos (ver caixa).Todos os casos de eutanásia serão comunicados a comissões compostas por um jurista, um médico e um especialista em ética, que verificarão o cumprimento dos critérios. Em caso de violação das regras, o "dossier" será enviado às autoridades judiciais e o médico poderá ser alvo de um processo.O direito à eutanásia estende-se aos menores. Se o doente tiver entre 16 e 18 anos, a decisão deverá ser tomada em concertação com os pais; no caso de o menor tiver entre 12 e 16 anos, o acordo dos pais é indispensável. Qualquer seja a idade do paciente que solicite a eutanásia, a lei é clara quanto às condições em que o médico pode praticá-la: o doente deve estar em condições psicológicas e mentais que lhe permitam "apreciar de maneira razoável as consequências da sua escolha e dos seus actos". E não basta manifestar o desejo de deixar de viver para ter direito a uma morte assistida: a prática da eutanásia fora do quadro legal continuará a ser punida com uma pena de prisão que pode ir até 12 anos.Apesar de muito criticada no estrangeiro - as autoridades holandesas chegaram já a ser comparadas com o regime nazi, cujas teses eugenistas conduziram à eliminação de milhares de crianças e adultos portadores de deficiência -, a nova lei é alvo de um expressivo consenso caseiro e da aprovação da comunidade médica holandesa. As últimas sondagens revelaram que 85 por cento dos cidadãos holandeses são favoráveis à legalização da eutanásia nos casos tipificados pela lei.Mas há zonas cinzentas em que a unanimidade não é regra. A proposta, já aflorada pelos responsáveis ministeriais da Saúde, de prescrição de uma pílula suicidária aos idosos, que lhes permitisse determinar em consciência a hora da morte, promete fazer correr muita tinta. A discussão em torno do conceito de "sofrimento insuportável" continua, a pretexto de uma polémica judicial recente. Um tribunal de Amesterdão revogou a 6 de Dezembro uma decisão anterior, declarando culpado um médico que concedera a eutanásia a um velho senador holandês "cansado de viver", Edward Brongersma. Para clarificar a questão, a Associação Real de Medicina (KNMG) encarregou uma comissão composta por psicólogos, médicos, juristas e especialistas em ética de entregar as suas conclusões sobre o assunto até 2003. De resto, a legalização da eutanásia também relança a questão da importância dos cuidados paliativos. No passado dia 11 de Março, o Ministério da Saúde anunciou o desbloqueamento de uma verba suplementar para apoiar iniciativas nessa área em franca expansão na Holanda. E se a nova lei é sobretudo percebida pelos doentes como um passaporte para a eutanásia, os médicos vão lembrando que ela pressupõe um esforço suplementar, na medida em que os critérios em vigor exigem que se esgotem todas as soluções terapêuticas antes de se avançar para a morte assistida. "Uma das consequências da lei é talvez a de ter permitido uma reflexão mais profunda, nomeadamente na comunidade médica, sobre as possibilidades de cuidados paliativos já existentes", afirmou o presidente da KNMG.Entretanto, a discussão sobre a eutanásia prossegue noutros países. Além da Bélgica, cujo Senado votou em Outubro a favor de uma lei da eutanásia, também a França parece poder avançar nesse sentido. O ministro da Saúde, Bernard Kouchner, disse já esperar que a decisão holandesa pressione a legalização da morte assistida no seu país. E no Reino Unido, uma mulher paralítica conquistou há duas semanas o direito de morrer na sequência de um processo judicial.com Reuters e AFP