Adivinhem quem vem para ser homenageado? Sidney Poitier
Durante 20 anos, a partir da década de 50, foi a mais importante - a única - estrela afro-americana a tornar-se um herói tanto para o público negro como para as audiências brancas. Um crítico americano, Vincent Canby, escreveu: "Sidney Poitier não faz filmes, estabelece marcos". Eis alguns: o primeiro actor negro a ganhar um prémio num festival internacional (Veneza, com "Something of Value", 1957), a ser nomeado para o Óscar de Melhor Actor ("The Defiant Ones", 1958), a ter um papel romântico ("Paris Blues", 1961), a ganhar um Óscar do Melhor Actor ("Lilies of the Fields", 1963), a beijar uma actriz branca num filme que tornava "natural" os casamentos inter-raciais ("Adivinhem quem vem para Jantar", 1967) e a tornar-se a estrela número um das bilheteiras da América -1968. Sidney Poitier foi o escolhido para, na próxima madrugada, receber o Óscar honorário pela sua carreira e por representar a indústria com "dignidade, estilo e inteligência".Hoje, com mestres de guerrilha como Spike Lee, "role models" como Magic Johnson ou uma constelação de estrelas com os nomes de Denzel (Washington) ou Eddie (Murphy), não parece nada decisivo o pioneirismo de Poitier. Os anos das décadas de 60/70, em que o liberalismo tentava ganhar terreno no mainstream americano, farão até figura de desconforto na história da representação dos negros no cinema americano. A "dignidade, estilo e inteligência" que a Academia hoje premeia foram, aliás, no rescaldo da violência e dos assassinatos de líderes como Martin Luther King, Jr. (que o elogiara publicamente), e Malcolm X, objectos de crítica por segmentos da comunidade negra. Acusavam Poitier de ser demasiado passivo, demasiado suave, no fundo, demasiado preparado para consumo do público branco. Como se fosse tão estereotipada a forma "civilizada" de Poitier se apresentar e o negro-como-criado no cinema de Hollywood (como Hattie McDaniel, a única negra que, antes dele, tinha recebido um Óscar, como secundária, em "E Tudo o Vento Levou", em 1939). Um artigo violentíssimo publicado no "New York Times" chegou mesmo a levar o actor a interromper a sua carreira, para fazer um balanço de vida.Filho (o sétimo) de um casal de agricultores, nasceu em 1924 em Miami, na Florida, mas cresceu na pequena aldeia de Cat Island, Bahamas. Aos 13 anos já trabalhava para suportar a família. Chegou a Nova Iorque sozinho, com 16 anos e três dólares no bolso. Para escapar ao frio do Inverno, mentiu sobre a idade e alistou-se no exército. Foi o seu refúgio durante um ano. De regresso a Nova Iorque, arranjou um emprego a lavar pratos e deu de caras com a profissão de actor, através do anúncio para um "casting". Sem experiência, e mal sabendo ler, candidatou-se ao American Negro Theatre. Depois de uma primeira e humilhante recusa, foi aceite. Teve a sua sorte numa peça quando substituiu Harry Belafonte. Dois anos depois, fez o primeiro filme, aos 22 anos: "No Way Out", de Joseph L. Mankiewicz. Seguiram-se "Sementes da Violência", de Richard Brooks (1955) e "Lilies of the Field", de 1963, o primeiro marco: cinco nomeações para os Óscares, e prémio para o actor, que interpretava um ex-GI que ajudava um grupo de freiras a construir uma capela no deserto do Arizona - foi o primeiro negro a ganhar um Óscar para um papel principal, e o segundo a ser premiado na história da Academia, depois de Hattie McDaniel.No mesmo ano, 1967, estrear-se-iam "To Sir, With Love", "No Calor da Noite", de Norman Jewinson (em que impunha a sua dignidade a um polícia racista do sul, dizendo, numa frase que se tornou slogan, "They call me MISTER Tibbs") e "Adivinha quem vem para Jantar" (em que um casal liberal, interpretado por Katharine Hepburn e Spencer Tracy, era posto à prova quando a filha lhe apresentava o namorado: um negro). Estes dois últimos filmes tiveram uma chuva de nomeações para os Óscares, numa edição, decididamente, "black is beautiful". O primeiro seria o vencedor da noite, batendo "Bonnie& Clyde", de Arthur Penn. Foi a época da glória de Poitier, que no ano seguinte seria votado o actor mais popular da América. Mas esses papéis de homem controlado, a dominar a violência com razão e intelecto, seriam apontados pelos dedos acusatórios dos mais radicais.Esta madrugada, no entanto, é tempo do ritual de celebração de Hollywood e do seu património. Numa edição em que, novamente, se volta a falar em imagens de raça e em estereótipos - três actores negros estão nomeados ao Óscar do melhor actor, Halle Berry, Denzel Washington e Will Smith -, feridas que podem ser sempre reabertas. Não deverá escapar aos mais distraídos que Denzel, em "Dia de Treino", forma com Ethan Hawke uma espécie de dupla polícia negro/polícia branco como Poitier e Rod Steiger em "No Calor da Noite". A diferença é que o "mau" é, agora sem complexos, o negro. Mas esse mesmo Denzel, depois de ter sido o radical Malcolm X, interpretou, há bem pouco tempo, em "Hurricane", um boxeur, Rubin "Hurricane" Carter, injustamente condenado por assassínio. Sobre a personagem, verídica, disse-se que tinha sido convenientemente "limpa" de sinais de violência, para veicular uma imagem politicamente correcta no cinema. O filme era dirigido por Norman Jewinson, o mesmo de "No Calor da Noite". Aí Denzel, que em vários papéis da sua carreira foi "suave e limpo", fazia tanto lembrar Sidney Poitier...