Segredos de Giotto a descoberto

Não nasceram de novo. Quase. Os famosos frescos de Giotto, das mais celebradas obras na história da arte, estão disponíveis para os olhos de todos. Durante dois anos, o mesmo tempo que o mestre florentino levou a criá-los, os 900 metros quadrados pintados na Capela da Arena, em Pádua, foram restaurados. Descobrem-se alguns segredos do génio que fazia figuras lindas e filhos menos bonitos, dizia Dante, claro.

Dante Alighieri, na Divina Comédia, baniu-o para o sétimo círculo do inferno. A Giotto, o aclamado pintor (e arquitecto) italiano, a quem se louva a ousadia, o feitio e o feito de ter rompido com a tradição secular bizantina? A Giotto, o mestre florentino que abandonou a "maneira grega" de pintar e que inaugurou a renascença na pintura italiana e europeia? O que cortou com o estilo liso, artificial, o ar patético com que o Cristo morto era representado na época e avançou no caminho do realismo? O que trouxe de volta figuras mais humanas, mais naturais, mais emotivas?Não, de todo. Dante atira para a habitação reservada aos usurários o início da nossa história. Ou seja, Riginaldo, o pai de Enrico Scrovegni, o homem que em 1300 comprou o terreno para construir um palácio e uma capela. Enrico era um dos homens mais conhecidos e ricos de Pádua. Herdou o negócio lucrativo do pai - emprestar dinheiro a juros elevadíssimos -, um pecado aos olhos dos concidadãos e da igreja. Enrico não era um bem-amado, viam-no como um trapaceiro, um hipócrita e acusavam-no ainda de outro pecado: o orgulho. Não espanta que a família não tivesse as melhores relações com a Igreja. Também não admira que tenha conseguido autorização para construir uma capela (onde existira uma arena romana) e fazer dela o seu túmulo. Algo vedado aos usurários. Pensava assim garantir-se um lugar no céu. A data é oficial. A 18 de Março abrem-se as portas da Capela Scrovegni, mais conhecida como a Capela da Arena, em Pádua. Poderá confrontar-se, face a face, com o Cristo Juiz e centenas de outras figuras em tamanho natural. Depois de vinte anos de estudo e investigação e dois anos de cuidadoso restauro, o ciclo de frescos mais famoso da história de arte pode ser apreciado. São 900 metros quadrados pintados entre 1303 e 1305 que obedecem a três temas principais: cenas das vidas de Joaquim e Ana, de Maria e de Jesus. Há ainda o Juízo Final e uma série de quadros que ilustram os sete vícios - não incluem a avareza, um outro pecado de Enrico (e há quem diga que de Giotto também) que o levou a fugir da ira popular para Veneza - e as sete virtudes. Um ciclo de frescos é uma série de pinturas que normalmente contam várias partes de uma ou mais histórias. Este tipo de ciclos são a quinta essência da obra de arte da Renascença, cuja sociedade espera que os pintores de frescos tracem histórias que eduquem, inspirem e dêem prazer. Enrico, o mau (?) da história, encomendou a pintura das paredes a Giotto em 1300. Ele levou dois anos a cumprir a tarefa (que lhe rendeu muito dinheiro e maior prestígio), numa capela pequena, assimétrica, com uma das paredes cortada por cinco janelas e com pouca luz. Os monges chegaram a protestar porque os sinos da igreja faziam muito barulho e porque era tudo muito luxuoso. Mas o que eles temiam era a concorrência que a capela lhes fazia. Muita gente acorria ao sítio. Não por causa da bula do papa Benedito XI que oferecia indulgências aos visitantes, mas para ver o trabalho de Giotto e seus discípulos. Tal como sucedeu agora: mais de vinte mil pessoas (até Janeiro) observaram, em quatro meses, numa iniciativa chamada "A tu per tu con Giotto" (visitas de pouquíssimas pessoas de cada vez, aos fins-de-semana e feriados), o trabalho de recuperação liderado por Giuseppe Basile, vice-director do Instituto Central para o Restauro italiano. Um especialista em Giotto completamente fascinado com o pintor florentino: "Estamos perante a base da moderna pintura europeia. De Masaccio a Michelangelo, todos os génios artísticos do século seguinte vieram beber a esta fonte", disse à revista italiana "Oggi". Os historiadores de arte falam ainda em Leonardo da Vinci e Rafael.O trabalho de restauro, meticulosamente preparado para não esconder os frescos durante muito tempo (ninguém queria repetir as experiências da capela Sistina que levou ao seu encerramento durante anos), generosamente abençoado com 3,5 milhões de liras (1,8 milhões de euros), vindos do Lotto, permitiu descobrir alguns (pequenos) segredos de Giotto. Como o Cristo na cruz de olhos fechados e não de olhos abertos como era normal na época, o véu transparente que lhe cobre a cintura, pintada com uma técnica que só se tornara conhecida em Quinhentos, o cabelo a cobrir-lhe parte do rosto, um pormenor que só os espanhóis Velázquez (Seiscentos ) Goya (Setecentos) usavam. Há depois detalhes interessantes como os espelhos no Cristo Juiz, o "homem invisível", as lágrimas no "Massacre dos Infantes", a técnica usada para dar leveza aos diabos no Juízo Final e densidade aos condenados, o primeiro caso na figuração humana em que há uns pés a pontapear (Jonas, na baleia). Ou ainda o modo como ele "esculpia" com a cor (quadro da Injustiça), confirmando o poder das suas figuras, a tridimensionalidade que lhes empresta.Mas o que é fantástico nos frescos lindíssimos desta capela, o que é referido pela maioria dos que a visitaram agora - ainda que com dezenas de alunos de restauro de pincéis e esponja na mão -, e essa é uma redescoberta, é a sensação de se fazer parte do acontecimento que Giotto relata, a ilusão de se estar no quadro, e não ser apenas um espectador. Às vezes apetece interrogá-lo porque a interpretação que faz de quadros bíblicos levanta a curiosidade: no beijo dos pais de Maria, por exemplo (episódio que ele foi buscar ao evangelho de Tiago, livro apócrifo, não faz parte da Bíblia). Quem é a mulher de negro, a única que não parece feliz com o reencontro do par? Giotto di Bondone nasceu em 1267 e morreu em 1337. Como todos os génios ganhou uma dimensão quase sobre-humana que, por mais dados factuais que se recolham, não desaparece. Conta-se que ele era um rapazito, pastor, que Cimabue, o grande nome da pintura italiana da geração anterior, encontrou a pintar ovelhas, do seu rebanho, numa rocha.Giotto tornou-se aluno de Cimabue mas rapidamente se diferenciou dele, absorvendo outras tradições como a pintura de frescos romana e a escultura gótica francesa. Todos os especialistas falam da força plástica das suas figuras, da combinação de emoção e espaço nos seus quadros, de como quebrou com os estereótipos estáticos da época marcando a "era da pintura" na arte do Ocidente. Os frescos da Capela da Arena são a sua obra prima. Estiveram muito tempo votados ao abandono e, tal como a capela, quase desapareceram, mas a Comunidade de Pádua salvou-os, comprando o edifício a um particular, em 1880, evitando a venda e a ida dos frescos para Londres. A capela e as pinturas estavam em péssimo estado. Tinham sido objecto de um restauro inglório nos anos sessenta. Os principais problemas eram a humidade (não só a exterior como a provocada pela transpiração das pessoas) que abalam a estrutura do fresco (cores de água aplicadas sobre a parede rebocada de fresco).Giuseppe Basile ganhou o desafio. Como se lê na visita virtual e interactiva à Capela ( www.provincia.padova.it/comuni/padova/partners/apt/capgiotit ), há "cor e luz, poesia e 'pathos'. O homem e Deus. O sentido da natureza e da história, da humanidade e da fé contados de um modo único." Ninguém sabe se Enrico terá um lugar no céu. Giotto garantiu-lhe um espaço numa parede da Capela (para além do seu túmulo). E partilhou com ele o mesmo pecado, o da vaidade: auto-retratou-se no Juízo Final, entre as figuras dos escolhidos... Afinal, Dante não o havia colocado acima de Cimabue? O mesmo Dante que, um dia, jantando em casa do pintor, olhando de soslaio para os seus oito filhos o provocou: "Como é que é possível, mestre Giotto, que faça pinturas tão belas e crianças tão feias?". O artista respondeu: "O facto é que, mestre Dante, as pinturas faço-as de dia e os filhos...de noite!"

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