Com os espíritos africanos do Museu Nacional de Etnologia
Em 1994, Frank Herreman, responsável pelas colecções do Museu para a Arte Africana de Nova Iorque, visitou o Museu Nacional de Etnologia de Lisboa. Nessa ocasião foi-lhe dada a oportunidade de conhecer não só os espaços expositivos - onde na altura se apresentava a mostra "Escultura Angolana, Memorial de Culturas", com mais de 250 obras - como também as reservas do museu, onde centenas de objectos de origens diversas aguardavam oportunidade de ser apresentados publicamente. A partir dessa visita, Herreman acalentou o desejo de organizar uma exposição que, afirma o próprio, "mostrasse a impressionante diversidade e qualidade das peças do museu". A oportunidade surgiu, por fim, no ano passado, quando organizou para a instituição onde trabalha uma mostra composta por um conjunto de 140 obras de arte da África sub-sahariana (sobretudo, mas não exclusivamente, de áreas em que os portugueses estiveram presentes como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau) pedidas emprestadas ao acervo do museu lisboeta. O conjunto foi intitulado "Na Presença dos Espíritos". Depois de ter tido uma apresentação inaugural em Nova Iorque e de ter circulado por diversas cidades norte-americanas - sendo apresentada no Flint Institute of Arts, no estado do Michigan, no Smithsonian, de Washington, e no Birmingham Museum of Art, no Alabama - a mostra chegou, finalmente, no passado dia 28 a Lisboa, prevendo-se que fique patente ao público no Museu Nacional de Etnologia por quatro ou cinco meses.Pode dizer-se que esta exposição apresenta uma rara particularidade no que toca a mostras de cariz etnológico: apesar de haver um tema que acaba por atravessar toda a exposição - a influência do universo sobrenatural na vida pública e privada dos vários grupos culturais representados, tema que está, de resto, na origem do título da mostra -, a escolha de peças foi presidida por razões eminentemente estéticas, procurando-se a elucidação dos contextos a partir dos objectos e não escolhendo-se os objectos que melhor esclareçam determinados contextos. Incluíram-se obras como figuras, bancos e cadeiras decoradas, cachimbos, máscaras, bastões e bonecos usados por reis, rainhas, chefes, padres, sacerdotisas e adivinhos, que convocam forças espirituais e que, segundo Herreman, de entre os seus temas mais relevantes "incluem um exame acerca dos objectos de prestígio e figuras de poder, rituais de iniciação e de morte, e símbolos de autoridade espiritual e secular". A exposição abre com um conjunto de peças do povo Dan da Costa do Marfim, e prossegue atravessando 26 grupos étnicos de Angola (nomeadamente os Chokwe, os Kongo, os Ovimbundo, os Yaka e os Zombo), passa pelos Fang, da Guiné Equatorial e os Baga, da Guiné-Conacri. Mas foi ao elaborar um núcleo de peças da Guiné-Bissau que Herreman revelou o seu grande fascínio - "pela riqueza formal, plástica, inventiva, e pelo seu colorido". Maioritariamente recolhidos no terreno durante as décadas de 50, 60 e 70, a feitura de alguns dos objectos incluídos em "Na Presença dos Espíritos" remonta ao século XVIII, enquanto outros datam dos anos 50 e 60 do último século. Muitas das 23 obras Bijagó (um conjunto variado de fascinantes máscaras, figuras de altar e objectos rituais vários) são, precisamente, de feitura contemporânea e para além dos materiais tradicionais como a madeira e as fibras vegetais incorporam elementos como sacos de plástico e mesmo lâmpadas, reelaborando uma linguagem plástica de surpreendente efeito estético e expressivo - como, de resto, acontece com algumas máscaras Matapa, que chegam a incluir pedaços de pacotes de cigarros com a distintiva marca "AC Filtro".Afastadas de um contexto expositivo de vitrines, sendo antes apresentadas ao visitante soltas no espaço do museu, é como deixassem de ser meros elementos de valor etnológico - evocando a sua original condição de intermediários entre uma dada comunidade e o mundo sobrenatural e funcionando no sentido de preservação e manutenção de estruturas religiosas, sociais e económicas - mas, assumindo-se antes, como diz Joaquim Pais de Brito, o director do museu, como detonadores do nosso imaginário ocidental.Estes objectos, diz ele, "tendem a falar mais de nós, são mais importantes para a construção da nossa própria identidade de ocidentais, a nossa capacidade de gostar, avaliar e, portanto, criar outros pressupostos sobre o nosso gosto, do que propriamente sobre os povos que eles são supostos evocar, porque chegaram com pouquíssima informação."