A escada
Comprei por tuta-e-meia na loja da Imprensa Nacional ao pé da Casa da Moeda Folhas soltas da Seara Nova (1929-1955) da Irene Lisboa, livro organizado pela Professora Paula Morão. Estava em saldo, havia um molho deles. Embora me comparem à Irene Lisboa (1892-1958), eu não tenho muito a ver com ela. Explico-me. O José Blanc de Portugal (1914-2000) achava o que eu acho acerca da Irene Lisboa: aquilo é que é escrever, aquilo é que é estilo. Mas eu acrescento: não sei se isso me interessa. Na página 9 do livro que referi vem esta transcrição:"Pensar...de qualquer modo se pensa, inadvertidamente até, mas escrever é utilizar certa e exclusiva forma de pensar. Há sempre muitíssima técnica e estratégia no escrever."Irene Lisboa. Solidão IConstatar que não posso escrever, nem viver, sem calcular, sem premeditar, sem planear repugna-me. A vida, para mim, é contemplação, não é acção, nem quase é gesto. A vida é visão, contemplação do mundo. Estado que não precisa de palavras nem de números. É esse silêncio de quando passa um anjo. O silêncio que é comunhão e presença, o oposto da solidão e do vazio.Regresso ao livro da Irene Lisboa, ainda não o li todo. Para já falo da capa: acho-a muito bonita, foi feita a partir de uma aguarela do Carlos Botelho (1899-1982), é uma paisagem de Lisboa. Nas cores doces, luminosas, pálidas, suaves reconheço a frieza, a geometria e o vazio das prosas da Irene Lisboa. A paisagem de Lisboa, a aguarela do Carlos Botelho, não tem pessoas nem animais. De seres vivos, só uma árvore de pé mas que possivelmente já morreu. Lisboa aparece como um jogo de volumes, de paralelepípedos coloridos, um palco abandonado pelos actores mesmo antes de ser atacado por um bando de bailarinos ou por uma praga de andorinhas e de gaivotas. A prosa da Irene Lisboa e as paisagens do Carlos Botelho têm, para mim, o aspecto terrível de serem cosy, heimlich, caseiras e, ao mesmo tempo, geladas e desertas. São caseiras como se diz nos restaurantes da mousse ou do pudim. Caseiras sem casa, caseiras fora de casa, caseiras para os que não têm casa. Durante muitos anos esteve na parede de uma casa fechada da Alexandre Herculano o graffiti: tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. A prosa da Irene Lisboa parece-me tão abstracta, tão cerebral, que chego a achar Os Lusíadas mais autobiográficos, mais confessionais, que Solidão. Na última reunião de condóminos da casa onde vivo, ficou decidido que cada um limpava o seu lance de escadas e que todos, rotativamente, limpavam a entrada. A entrada do meu prédio é de mármore e a escada uma senhora velha escada de madeira. Um dos meus maiores sonhos de criança era poder um dia esfregar e encerar a escada como a Maria, a criada terrível, podia fazer toda ufana e a mim não me deixavam. Fui uma intelectual à força. Bem vistas as coisas, não fiz a instrução primária. Também isto me separa da Irene Lisboa que foi professora primária.Será com imensa alegria que vou limpar o pó e enterrar as baratas mortas, esfregar e encerar os degraus da escada da minha casa, do meu convento, do meu moinho, da minha ecclesia domestica. O termo ecclesia domestica (igreja doméstica, em Latim) é uma expressão antiga que encontrei nos parágrafos 1656 e 2204 do Catecismo da Igreja Católica. O meu espírito procura ser prático, religioso, poético (literário), científico e antes de tudo caridoso (amoroso). Como diria S. Paulo, de que serve limpar e subir ou descer a escada quando não há amor?Já agora, se quiserem saber mais sobre a escada, leiam a comunicação "A Escada de S. João Clímaco" de Ana Cristina Almeida. Este texto está publicado pela Universidade do Algarve no livro Figura coordenado por António Branco (Faro, 2001). Aí encontrarão as belas imagens da Idade Média. Não é nos corredores e nos quartos gelados da Irene Lisboa, no espaço, no labirinto da solidão, que me revejo. Mas na Gramática do mundo, livro de poemas da Professora Maria de Lourdes Belchior (1923-1998). Este livro, publicado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1985, está esgotado, ao que sei. Revejo-me nos poemas da Professora Maria de Lourdes Belchior e nas lições de limpeza de escada da Dona Maria do Céu (certamente de muito mais alta qualidade do que os cursos de informática que fiz). Gostava que destas minhas cartas ou crónicas ficassem as referências bibliográficas, as imagens dos pintores e os poemas. Acabo com a transcrição de um poema da Maria de Lourdes Belchior que evoca um quadro do pintor José Escada (1934-1980), este poema está no livro que referi. E o quadro julgo que ainda não o vi. Mas quero ver.