José Luís Borges Coelho - despertar consciências
Depois do imenso sucesso obtido com a integral dos Prelúdios, de Debussy, António Rosado aventura-se agora no ambicioso e sofisticado universo dos Estudos. É o primeiro pianista português a cometer tal proeza.
José Luís Borges Coelho dirige o Coral de Letras da Universidade do Porto há 36 anos. Cada ensaio parece o primeiro, a ver pelo entusiasmo com que o faz. Mas a sabedoria com que cultiva a arte de bem cantar revela uma experiência que não se adquire em dois dias. "Apenas encerramos às segundas-feiras, como os museus", diz, mostrando claramente que este grupo, apesar de nem todos o frequentarem assim tão assiduamente, como faz questão de salientar, deve o seu carácter amador apenas ao facto de não ser remunerado. A adesão das pessoas tem sido a melhor recompensa para Borges Coelho, pois sabe que a opção pelo rigor que imprimiu na formação alterou profundamente a vida dos que a constituem. O percurso na música começou num seminário onde "os alunos que se distinguiam nesse campo eram olhados de lado". No entanto, foi lá que o professor de música - o P. Minhava - cedo reparou na sua facilidade e qualidades vocais. Só viria a frequentar o Conservatório de Música do Porto em idade adulta, com professores de referência (Jorge Peixinho, Filipe Pires, na Composição, Fernanda Correia, no Canto) e ainda como estudante fundou o Coral de Letras. "Durante os primeiros vinte anos do Coral houve uma preferência nítida pela música de raiz popular, daí o inevitável encontro com Lopes-Graça. Nos últimos anos tem vindo a assumir muita importância na nossa programação a polifonia portuguesa, tão desconhecida na sua terra. Trazê-la à luz impõe-se-nos quase como um imperativo categórico. E colhemos todos, na incrível qualidade do que vamos descobrindo, um estímulo fantástico para o que fazemos." A relação com o compositor Fernando Lopes-Graça remonta ao primeiro concerto do Coral de Letras, vindo cedo a transformar-se numa amizade. "Cerca de um ano depois do convite do Graça para gravarmos obras suas, reuni o grupo na igrejinha românica de Cedofeita, numa tarde de S. João, e eu mesmo gravei as 'Encomendações das Almas' com aquele gravador de bobines que ali está," diz, apontando para um recanto da sala de trabalho. "Peguei na bobine e fui à Parede mostrar-lhe para ele dizer de sua justiça. Qual não foi o meu espanto quando ele, pegando num velho gravador, provavelmente o que usava nas suas recolhas de campo, se muniu de metrónomo e partitura, e se pôs a conferir tudo ao mínimo pormenor... de repente começou a dizer: 'Não pode ser! Não pode ser!", e aí comecei eu a ficar preocupado..." Mas o espanto devia-se apenas ao facto de Lopes-Graça não querer acreditar que ouvia um grupo de amadores cantar assim, e durante esse fim-de-semana a fita correu muitas casas da capital. As indicações de tempo viria a rectificá-las o compositor na partitura, com o seu próprio punho, depois da gravação definitiva. Para além da sua qualidade artística, a música de Lopes-Graça tem um indiscutível poder de intervenção social, não apenas as "Heróicas", e Borges Coelho estava ciente de que a podia usar como instrumento para despertar consciências. "É preciso dizer que as 'Canções Heróicas' não se podiam cantar antes da Revolução. Eram tempos complicados esses, e, mesmo depois da liberdade chegar, nem sempre as reacções foram lineares." A licenciatura que tirou em História poderia reflectir uma influência directa do seu irmão, o historiador António Borges Coelho, mas não. "Comecei a universidade mais ou menos na mesma altura em que ele saiu da prisão e continuou o seu curso. Tinha trocado Direito por Histórico-Filosóficas, que logo interrompeu, primeiro para a clandestinidade e depois para a cadeia. Foi condenado a dois anos e meio num megajulgamento que correu aqui no Porto e onde foram julgados, entre outros, Óscar Lopes, Agostinho Neto, Ângelo Veloso, José Augusto Seabra... mas só foi libertado, de Peniche, quase sete anos depois, tendo conhecido todas as masmorras da PIDE. Através das chamadas 'medidas de segurança' o Estado Novo permitia-se prolongar indefinidamente o tempo de prisão, passando por cima das sentenças dos seus próprios tribunais plenários, com o mais completo despudor." A história é contada sem amargura aparente mas com expressão séria, como seria de esperar. Talvez por prezar tanto a liberdade, o maestro nunca se meteu na vida dos filhos. Lembremos que é pai do pianista Miguel Borges Coelho, um dos mais promissores de sempre em Portugal, e que a sua filha Mafalda, para além de ser arqueóloga, canta no Coro Gulbenkian. "Não me lembro de lhes ter dito uma só vez para irem estudar. Tinha a percepção de que isso podia funcionar completamente ao contrário." Mas com certeza que o ambiente familiar foi determinante, a ver pela impressionante colecção de CD que tem em casa. "Os músicos de hoje podem ouvir a música de todos os tempos tocada pelos melhores intérpretes. Não há melhor aprendizagem do que essa, feita por gosto e de forma imperceptível." Muito fica por contar de uma vida transbordante de experiências e onde nem tudo foram rosas. "Na carreira de professor, orgulho-me de contar com dois processos disciplinares. Um, no exame de estado, mandado instaurar por um ministro do tempo 'da outra senhora' e outro, poucos anos depois do 25 de Abril, por um secretário de Estado que chegou a ministro. Nenhum deles se saiu bem da contenda e, muito a contragosto, tiveram que mandar arquivar os processos. Bem mais recentemente, fui forçado a abandonar a Escola Superior de Música, através do simples mecanismo da recusa de contrato por parte do IPP, apesar de a escola, por duas vezes, o ter votado por unanimidade, e até, na primeira delas, por aclamação, numa altura em que era de regra o voto secreto. Tendo sido, apesar disso, presidente do conselho científico, ao acabar o meu mandato, foram ao ponto de extinguir o órgão, com receio de que fosse eleito outra vez... Apesar do apoio inequívoco, repetidamente manifestado, ao modo como abordava e lidava com os problemas da escola, designadamente, no âmbito do conselho científico, quando saí, seguiu-se um daqueles silêncios ensurdecedores. A escola deixou-se tomar por velhos medos. Se é que muitos não respiraram de alívio. Uma consciência crítica, num meio onde, em resultado de um poder arbitrário e autocrático exercido pela tutela próxima, se vêm acumulando, ano após ano, os mais inverosímeis problemas (não falta disso no País de Abril) acaba sempre por se tornar incómoda... Pela mesma altura, um sindicalista era despedido numas minas alentejanas e as minas paralisaram imediatamente", disse no fim, porque nunca é tarde para acordar.