40 anos na estrada
Estão a comemorar 40 anos de carreira, feita de discos e concertos lendários. É grande a música. São muitos anos. É muita estrada. Frank Zappa tinha razão ao afirmar que são os Chieftains, e não os U2, a maior banda irlandesa de todos os tempos. "The Wide World Over", antologia acabada de editar, é um certificado comprovativo.
"The Wide World Over", 39º álbum na discografia dos The Chieftains, é uma panorâmica, incompleta mas mesmo assim fascinante, do longo percurso do grupo, não só pela folk, como pela country e pela pop (agora também pelo "reggae"...), onde estão presentes convidados do calibre de Sinéad O'Connor, Ry Cooder, Joni Mitchell, Van Morrison, Art Garfunkel, Diana Krall, Sting, Linda Ronstadt, Elvis Costello e os Rolling Stones. Três novos temas foram incluídos na restrospectiva: "Redemption song", um original de Bob Marley, com a presença do filho, Ziggy, que é também a primeira incursão dos Chieftains no "reggae", "Morning has broken", um velho "hit" de Cat Stevens, com as vozes de Diana Krall e Art Garfunkel, gravado no dia de Ano Novo durante um cruzeiro pela Antártida, e o tradicional "Chasing the fox", interpretado pela Cincinnati Pops Orchestra.Lendas vivas da música tradicional irlandesa, os Chieftains tornaram mais céltica a "world music", colorindo de verde esmeralda uma vasta parcela do planeta, a partir do momento em que, ainda nos anos 50, Paddy Moloney, Sean Potts e Martin Fay abandonaram a orquestra Ceolteoiri Chaulann, com direcção do "papa" Sean O'Riada, para fundar o grupo e alargar os seus horizontes musicais.Jigs e reels de origem tornaram-se, desde 1964, ano de lançamento do álbum de estreia dos Chieftains, o pão nosso de cada dia desta banda cujas "uillean pipes", violino, flauta, tin whistle, concertina, harpa e bodhran soam tão naturais num pub alvoraçado como num auditório de concerto. Os Chieftains necessitavam de viajar, para partilhar, e foi a isso que se dedicaram ao longo das últimas duas décadas.Foram à China, dando a perceber o misterioso parentesco entre as músicas irlandesa e chinesa. Passaram pela Galiza, onde fizeram "Celebration", com os amigos Milladoiro. Estiveram na Bretanha para ajudar a selar um "Celtic Wedding" que é um dos álbuns clássicos da folk europeia. Nos EUA deram a conhecer "Another Country" e puseram os gigantes da mitologia céltica, os Tanatha De Dannan, a tocar banjo. Vieram a Lisboa e ao Porto, onde, numa das edições do Intercéltico, rubricaram um concerto que ficou para a história dos melhores do festival. No cinema, contribuiram para que "Barry Lyndon", de Kubrick, acrescentasse mais uma folha ao trevo que serve de ícone da Irlanda. Tocaram com Rickie Lee Jones, Nanci Griffith, Marianne Faithfull, Jackson Browne, Tom Jones, Mark Knopfler e Júlio Pereira. Sem eles, o gaiteiro galego e actual superstar da "world music", Carlos Nuñez, que apadrinharam durante anos, não teria a projecção que tem hoje. Tocaram com orquestras, homenagearam Dublin ("The Bells of Dublin") e as mulheres ("Tears of Stone"), aproximaram as várias músicas e culturas do globo umas das outras. Pelo caminho, arrecadaram Grammys, em 1992 (com "An Irish Evening at the Grand Opera House, Belfast"), 1993 (com "Another Country"), 1996 (com "Santiago") e 1998 (com "Long Journey Home"). Eucaristia. Assistir a um concerto dos Chieftains é participar numa eucaristia composta por música com raízes mergulhadas na eternidade do céu e alimentada pelos sucos da terra. Cada performance deste colectivo formado por respeitáveis veteranos de cabelos brancos é ainda uma lição de humor e jovialidade em que a comunicação com o público desempenha um papel fulcral. E a fidelidade a um compromisso: o grande concerto de comemoração que tinham agendado para este ano, em Dublin, foi cancelado em respeito às vítimas do atentado de 11 de Setembro; no Verão passado, convidados para tocar no Jubileu de Isabel II de Inglaterra, recusaram. "Não quero entrar nessas águas", declarou Paddy Moloney, 63 anos e líder incontestado dos Chieftains: "Recusei por duas vezes a condecoração da Ordem Real e, ainda que a situação pareça estar a mudar, as coisas relacionadas com o Império Britânico não combinam comigo...".Por todas estas razões, os U2 podem contentar-se com um honroso segundo lugar. Porque os vencedores incontestados são os Chieftains. Os U2 são uma banda pop que nasceu na Irlanda. Os The Chieftains são a música da Irlanda. Frank Zappa foi rápido a percebê-lo. Em 1993, numa entrevista dada a um jornal irlandês, o malogrado compositor e guitarrista foi peremptório: "Os U2 podem ser a exportação mais popular e comercialmente bem sucedida da Irlanda da actualidade, mas não há comparação entre a qualidade da música que fazem e a dos Chieftains. (...) Tocamos juntos sempre que viajam até cá e adoro a música que estes tipos fazem, as melodias e as mudanças de acordes e, especialmente, a forma como a executam (...). Algo apenas possível de conseguir por quem está junto há 30 anos. As pessoas descrevem os U2 como 'rockers pós-modernos', mas o que é que isso quer dizer? O que é preferível: uma inventividade medíocre [NR: não nos esqueçamos de que era o próprio espírito dos Mothers of Inventions a falar...] ou uma ligação directa com a cultura céltica? Os Chieftains são a sua própria cultura e ouço neles traços não só da história céltica como da história universal, ecoando desde o princípio do tempo"."The Wide World Over". O mundo inteiro é a casa dos Chieftains.Tesouros. Mas não nos enganemos. Embora o grupo decano seja hoje um cidadão do mundo, a estrada principal continua a ser aquela que a belíssima capa de "The Wide World World" nos mostra: um caminho pedregoso, algures no coração da ilha, ladeado de verde e de sonho, apontado para onde o horizonte se confunde com as montanhas e estas com o céu. Apesar dos convidados, apesar do convívio com outras músicas, "The Whole Wide World" tem as cores e o mistério da Irlanda (ainda a capa: as fotos do interior impelem a comprar imediatamente um bilhete de viagem...). Sinead O'Connor torna-se rainha da folk, em "The foggy dew". Os The Corrs tentam estar à altura da tradição, em "I know my love". Ricky Scaggs recorda o country reel "Cotton-eyed Joe", do álbum "Another Country". Nesta procissão de estrelas, na qual se incluem Joni Mitchell, Van Morrison, Diana Krall, Sting, Linda Ronstadt e os Stones, que traz de novo à baila sobretudo álbuns mais recentes como "The Long Black Veil", "Tears of Stone", "Another Country", "Water from the Well", "Long Journey Home" e "Santiago", o brilho é intenso. Mas cerrando um pouco os olhos, veremos uma luz mais pura e que os maiores tesouros se escondem em lugares predestinados: na festa colectiva celebrada ao vivo no mítico pub de Matt Molloy, nos jigs, reels e airs e no erguer dos copos do "set" "The munster cloak/an poc ar buile/Ferney hill-Little Molly", em "Morning dew/Women of Ireland" ou em "Here's a health to the company". "Carolan's concerto" (de "The Celtic Harp") devolve-nos a música da água e a memória do harpista cego Turlough O'Carolan. Deliciosas, são o mínimo que se pode dizer da combinação txalaparta basca mais Linda Ronstadt a cantar com Los Lobos uma salerosa "Guadalupe" e da incursão chinesa em "Full of joy". Quanto aos três originais, descontando a naturalidade da inclusão de "Chasing the fox", um tema do reportório mais antigo do grupo, aqui pela primeira vez em versão de estúdio, os outros dois são meras curiosidades. A apropriação de "Morning has broken", de Cat Stevens, por Diana Krall e Art Garfunkel limita-se a dar um polimento "trendy" de luxo a este "slow" que não constituiu qualquer mais valia para os anos 70, enquanto a incursão na música jamaicana, "Redemption song", de Bob Marley, co-produzida por Don Was e cantada por Ziggy Marley, não torna convincente o diálogo das "uillean pipes" com o espírito "rasta". Não chega a ser bem "reggae". Nem o ritmo sincopado lá está nem Ziggy consegue fazer descolar o que mais parece uma balada saca de batatas a arrastar pelo chão. Mas desculpa-se, porque os Chieftains continuam insaciáveis.The Chieftains, anfitriões, ou The Chieftains, bastiões da tradição. Cada um ouvirá e apreciará "The Wide World Over" consoante a sua própria forma de encarar a folk. Ambas fazem justiça a uma banda que, acima de tudo, há 40 anos se preocupa em aprofundar, alargar as fronteiras e divulgar a cultura que lhe serviu de berço. Long live the Chieftains!