Filhas da Ally McBeal

Será que também acontece em Portugal? Leio no "The Sunday Times" que as crianças de quatro e cinco anos já se inquietam com o estilo. No recreio, elas falam das roupas, dos penteados, dos sapatos das heroínas dos desenhos animados preferidos (como é que será o estilo Pókemon?). Diz o mesmo jornal que as festas de aniversário das meninas já não se gozam no jardim ou no MacDonald's. Parece que a moda, agora, é mais nos "spas" (terei lido bem?) e em bares onde se pintam as unhas. O problema não é o estilo. O problema é grave: esta preocupação precoce com a aparência está a assustar especialistas que começam a falar em anorexia em meninas de três, quatro e cinco anos. O departamento de nutrição do Royal Hospital for Sick Children de Glasgow (Reino Unido) alertou, depois de uma investigação que está em curso há dois anos, para uma tendência perigosa em crianças tão pequenas como as de três e quatro anos: a do cuidado com a imagem, com o corpo. Algumas estão tão insatisfeitas com o que vêem ao espelho que estão prontas a fazer dieta e a restringir a sua alimentação para melhorar a aparência. Durante dois anos a equipa do médico John Reilly acompanhou cem crianças, bem como as suas famílias. E concluiu que "crianças com mães do tipo Ally McBeal (famosa série televisiva), que são rigorosíssimas com aquilo que comem, têm, aos cinco anos, uma maior predisposição para dizer que se sentem ou parecem gordas". Com 48 por cento das mulheres com idades entre os 25 e os 35 anos a fazerem algum tipo de dieta e um quinto de todas as jovens sempre a reclamar porque estão numa eterna luta contra a barriga, há uma perigosoa cultura da dieta a passar de mãe para filha.O departamento de desenvolvimento humano e estudos sobre a família da Universidade estatal da Pensilvânia (EUA) fez um estudo semelhante com meninas americanas que andavam na escola. Descobriram que alunas com cinco anos se manifestam ansiosas com as suas formas e se consideram gordas.As clínicas que tratam de distúrbios alimentares, e os hospitais para crianças no Reino Unido (como por exemplo, o Great Ormond Street Hospital, em Londres) relataram que estão a tratar meninas de cinco e seis anos com anorexia nervosa. Que, como todos sabemos, é uma doença. Que, como sabemos, tem graves consequências. Que, como não podemos ignorar, pode matar.Não se pense que este é um problema anglo-saxónico. Este ano, o Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo abriu um serviço para crianças com anorexia e bulimia. Brasil, portanto. A procura não se fez esperar. "Sabíamos que seria grande", explicou o coordenador do projecto ao jornal "O Estado de S. Paulo" (estadao.com.br): "Há uma grande pressão social para que as pessoas mantenham a forma física". O que afecta tanto meninas como meninos (para melhorar os seus desempenhos no desporto muitos garotos começaram dietas alimentares). A erotização precoce também parece jogar a favor do aumento do número de casos. "As meninas são incentivadas a vestir-se como mulheres, a dançar como bailarinas e sonham em ganhar dinheiro como modelos, sempre muito magras". Parece ser mais fácil tratar da doença nos miúdos: "Não têm uma imagem deformada do corpo tão acentuada como os adultos. A adesão ao tratamento é maior. Como a personalidade ainda não está totalmente formada e a criança está sob orientação dos pais, fica mais fácil controlar o que ela come e como pratica exercícios". Quando a doença não é logo tratada a criança pode apresentar osteoporose, baixa estatura, diminuição da fertilidade. Não consigo evitar, penso no conselho de Jill Welbourne, directora da Associação dos Distúrbios Alimentares (EUA), enquanto preparo o lanche da minha criaturinha de quatro anos:"As crianças aprendem pelo exemplo, por isso é provável que copiem os vossos hábitos alimentares, quer vocês queiram quer não. Não contem calorias ou se mostrem irritadas em frente ao espelho com o tamanho das vossas ancas". A criaturinha deve ter poderes telepáticos:"Mamã, porque é que a boneca da Pandora é tão magrinha?" "Porque é uma Barbie", rosno por dentro, prometera a mim própria que as minhas filhas não teriam barbies e já estou a adivinhar uma súplica. Engano-me. "As barbies são assim todas magrinhas, mais magrinhas do que eu?" Tiro os olhos do iogurte com banana; afinal, ela não é tão magra como eu pensava. Ei-la pequenina, junto à porta espelhada do forno eléctrico a puxar o cabelo para trás das orelhas. Pego-lhe ao colo a medir-lhe a magreza com as pontas dos dedos nas costas. Penteia-me o cabelo e responde, mais rápida do que o meu medo: "Não são só as Barbies, sabes, a Betty Spaghetti, aquela que tu me trouxeste, sabes, também é magrinha, sabes, eu também tenho bonecas magrinhas". "Mas olha que os bonecos da mana são bem gordinhos!" "Pois, mas a mana é bebé, gorducha, come folhas secas e esferovite e areia e eu já sou crescida!" E o que é que uma coisa tem a ver com a outra? Nem quero pensar, muito menos perguntar: "Come o iogurte, por favor".

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