Conversa com vista para Lia Gama
Para os que souberam não perder "António, um rapaz de Lisboa", último e magnífico filme de Jorge Silva Melo, Lia Gama será para sempre a inesquecível Carmen, mãe de dois rapazes de Lisboa, António e o seu irmão. Durante a nossa conversa (que me soube a pouco, de tão torrencial que é o desfiar vivido das suas turbulentas memórias), a Lia contou que fez, ao longo da sua carreira, muitos papéis de mãe. Vi-a nalguns deles, mas em nenhum atingiu a fasquia raríssima do sublime, como na pungente, comovedora e adorável Carmen - "Eres para siempre la más preciosa de todas las madres!", galanteio que deveria ter ouvido enquanto volteava sorridente por entre as compras do El Corte Inglés em Sevilha. Apetece ir buscá-la ao ecrã e trazê-la em braços para casa, para lhe dar mimo, o mimo que a seu "saleroso" jeito vai distribuindo no filme pelos filhos, pelo neto, pela vida. Essa mesma vida que, sendo-lhe madrasta, Carmen-Lia teima em ver cor-de-rosa, com a desarmante desfaçatez dos inocentes. É uma actriz singular, das poucas que tem na cara, no corpo, na voz, a espessura de muitos amores e desamores, de muitas noites, de muitos copos, de uma boémia, vadia e poética, tecida em tertúlias que rasgavam madrugadas dentro e que Lisboa foi perdendo. No caso da Lia, essa boémia longínqua ficou-lhe agarrada à pele e sugere até a música de um género único, pertença de outra cidade - o "cabaret" berlinense. Bertolt Brecht e Kurt Weill não a teriam deixado escapar e o "ar" daqueles palcos de Berlim assentar-lhe-ia que nem uma luva. Habita nela, "rapariga de Lisboa" que afinal nasceu junto ao Zêzere, uma espécie de tensão-em-carga que só o expressionismo consegue traduzir com fidelidade e exaltar. Acesos os projectores sobre esta "Conversa com vista para...", peço a maior atenção aos leitores da PÚBLICA - Lia Gama vai entrar em cena. Ao lerem algumas passagens do que me contou da sua vida, os vossos corações podem "estremecerzinho", como Guimarães Rosa nos ensinou ser possível dizer!Maria João Seixas - Lia, diz-me quem és.Lia Gama - Uma pessoa nascida sob o signo de Gémeos - e Gémeos ao quadrado!, porque tenho o ascendente em Gémeos. Nascida com o nome próprio de Maria Isilda e que, na adolescência, decide mudar tudo, rejeitar, anular radicalmente os primeiros anos da sua vida, mudar de nome, de cabelo, tirar as saias pregueadas aos quadrados e os "socquettes" brancos e comprar cinto de ligas e meias de vidro.MJS - Com que idade exactamente?LG - Com catorze anos. Tive depois uma fase intermédia e a seguir surge a actriz Lia Gama. Sou portanto várias pessoas, confusas e indefiníveis, até para mim própria. É capaz de acontecer isto com os geminianos.MJS - Mudaste de nome - de Maria Isilda para Lia. Alguma razão especial?LG - Os meus livros de adolescente têm o meu nome escrito de várias maneiras, acompanhado de datas - Maria Isilda, Isilda, Leah (por causa do José Rodrigues Miguéis). Mas Leah não era nome que se pudesse usar e, pouco a pouco, fiquei Lia. Hoje em dia, em coisas oficiais, em hospitais, etc., embora ache estranho ouvir o nome, já não me soa tão mal quando me chamam por Isilda ou Maria Isilda. Já assumo melhor o meu nome próprio que, afinal, é um nome celta tão bonito - Iselt. Já não preciso de rejeitar o passado e é cada vez mais importante saber quem sou. Maria Isilda é forte, é fundador da minha pessoa e do milagre que acabou por ser todo o percurso da minha vida.MJS - Queres dar-me algumas coordenadas desse percurso a que chamas milagre?LG - É verdadeiramente extraordinário que alguém que nasceu na Barroca do Zêzere, à beira daquele rio cheio de cachoeirazinhas, entre aquelas serras, a Estrela de um lado e a Gardunha do outro, com a família toda ali, tenha vivido o que já vivi, tenha dado a pessoa que sou, com um percurso tão fadado. Pedi ao meu filho, há meia dúzia de anos, para me levar ao sítio, à aldeia onde nasci e onde nunca mais tinha voltado desde o fim da guerra, tinha eu ano e meio. Fui direitinha ao som do rio, logo na estrada percebi que era por ali que devíamos voltar (uma memória auditiva intacta guiou-me) e, imagina, descobri também os anjinhos da minha infância, os anjinhos que até me davam pesadelos, porque eram angulosos, descarnados, com cabelos pretos escorridos, nada parecidos com os querubins gordinhos e barrocos dos azulejos. Ao voltar à aldeia percebi donde é que eles vinham - são os dois arcanjos que circundam o altar-mor da igreja da Barroca do Zêzere. Lembro-me ainda da primeira música que ouvi, era a sanfona de um tal tio Abel, que tocava acordeão no alto de uma ribanceira.MJS - Deixaste a Barroca pequenina, trouxeram-te para Lisboa e por aqui ficaste. Consideras-te, ao fim de todos estes anos, uma lisboeta?LG - Sou da Beira Baixa, a minha origem é ali. Os meus pais podiam ter imigrado para o Porto, em vez de ter sido para Lisboa. Adoro esta cidade, calcorreio-a em todas as direcções, a pé, em transportes públicos.Tendo, como infelizmente tenho, demasiados tempos de ócio, passeio muito por Lisboa. Há muitos anos que me habituei a passear pela cidade, conheço-a bem, mas sou tão de Lisboa como podia ser do Porto. Não, não posso dizer que sou uma lisboeta, embora me considerem como tal.MJS - Aos catorze anos, já o disseste, decides-te a fazer um corte com a família e saltas para a vida. Sozinha?LG - Completamente sozinha. Ainda não tinha feito catorze anos. Fui, sobretudo, obrigada a tomar decisões muito cedo. E fiz-me à vida. Claro que o processo foi muito doloroso... MJS - ... mudamos de rumo?LG - Não tenho nada a esconder da minha vida. Se aos cinquenta e sete anos assim fosse, era porque não tinha conseguido olhar para mim, ver bem quem sou, nem tinha arranjado coragem para me conhecer. Talvez o Sartre me tenha ajudado a rejeitar a ideia de me parecer com aquilo que os outros pensam de mim, de me identificar com a imagem que os outros têm de mim. A seguir ao 25 de Abril, depois daquela quantidade de coisas que todos vivemos tão intensamente (já me tinha apaixonado pela primeira vez, já tinha tido o meu filho), entrei em parafuso e pensei que devia fazer análise, para ir ao fundo de mim, perceber melhor quem é que eu era realmente e qual a origem dos meus problemas. Falei com o Mário Cortesão Casimiro, marido da Gina Santos, que nessa altura fazia de minha mãe nos "Pequenos Burgueses", em cena na Cornucópia. O Mário Cortesão passava muitas vezes pelo teatro e um dia pedi-lhe para me indicar um psicanalista. " - Nem sonhes! Não precisas nada disso, tens a profissão." "- Mas eu não consigo resolver os meus problemas através da profissão, nem consigo exorcizar os meus fantasmas nas personagens que interpreto, por mais que tente." "- Não és católica?" "- Não." "- Não sabes fazer um exame de consciência, ir para casa, analisar o teu dia e, se for preciso, fazer a contrição? É o que tens que fazer. Não te metas nisso das análises, vais perder tempo e confundir-te ainda mais. Aprende mas é a olhar para ti. Não tens que fazer mais nada."MJS - Seguiste o conselho?LG - Segui e continuo a seguir. Nem podes imaginar como aquilo me ajudou. Foi, de novo, muito doloroso, longo, não cheguei naturalmente a nenhuma conclusão, mas agora sei muito bem quem sou e que valores defendo. São, no fundo, os mesmos valores que me levaram a sair de casa do meu pai - liberdade, justiça, fraternidade. Vivi uma infância onde estes valores estiveram ausentes. Fui uma criança maltratada.MJS - Maltratada?LG - Sim, maltratada. E não é de boca. O meu pai e a minha madrasta foram processados e julgados no Tribunal da Boa Hora por maus tratos a uma criança, eu, na altura com dez anos. Houve denúncias anónimas, por escrito. Foram absolvidos porque eu não os acusei. Recusei-me a fazê-lo. Tudo isto passava-se numa família "normal" da pequena burguesia, não éramos nenhuns pobrezinhos de Job, nem éramos "lumpen". Havia muito rigor em casa, muita higiene, a minha madrasta era uma belíssima cozinheira e eu, a esse nível, fui bem educada. Por isso sou boa dona de casa, sei passar a ferro, cozinhar, bordar lenços, etc. Era uma criança bem vestida, limpinha, andava na escola. Penso que não os acusei quando no tribunal me perguntaram se me agrediam, talvez por medo das represálias, mas também por orgulho - não me apeteceu ser a vítima. Ficou-me dessa experiência o ódio ao medo e a rejeição do binómio vítima-carrasco. Tenho por isso uma atenção desmedida, sobretudo nas relações afectivas, a qualquer sinal que enuncie uma situação de dependência.MJS - Mudou alguma coisa lá em casa depois do julgamento na Boa Hora?LG - A minha madrasta coibiu-se de me bater, o meu pai não. De qualquer modo, se o tratamento deixou de ser violento fisicamente, passou a sê-lo psicologicamente. Mas tive tempo de sobra para preparar a minha saída. Dizia todos os dias - vou sair daqui, quero sair daqui.MJS - Tinhas para onde ir?LG - Fui bater à porta da minha mãe, que também vivia em Lisboa, embora tivéssemos muito pouco contacto uma com a outra. Fiquei a viver em casa dela e arranjei um emprego. Tive que deixar de estudar, o que foi pena porque adorava aprender e era uma belíssima aluna.MJS - Que emprego arranjaste com catorze anos?LG - Fui trabalhar para um cabeleireiro. Como não posso estar parada muito tempo num sítio (daí o Virgílio Martinho chamar-me leviana e o Jorge Silva Melo dizer que sou vadia), fui saltando de cabeleireiro para cabeleireiro, porque isso também implicava uma promoção profissional. Começavas por ser aprendiza, depois mudavas e passavas a ajudante, a seguir ias para o Instituto de Cabeleireiro fazer um curso de tintas e por aí fora. Estava eu a tentar ser uma excelente tintureira num cabeleireiro do Chiado, o Monteiro, quando conheço uma das clientes do salão, a Myriam Pimentel, mulher do Horácio Pimentel, nada mais nada menos que da família dos donos do Teatro Monumental. Desde pequenina que quis ser actriz e falei-lhe nesse meu sonho. Ela prometeu-me tratar disso e tirar-me do cabeleireiro. Lembro-me que me deu bilhetes para eu ir ver o "South Pacific" e arranjou-me um emprego no atelier do Jorge de Carvalho (espaço onde depois funcionou o Satélite), onde se faziam os grandes telões das peças para a frontaria do Monumental. Um dia, nesse atelier, enquanto decorriam os ensaios para a "Margarida da Rua", o Pinto de Campos desenhou uma marionetazinha da Laura Alves, vestida de Mistinguette. O Pinto achava-me muita graça e teve a ideia, para me dar mais uns cobres, de me produzir também à la Mistinguette e de me pôr a vender aquelas miniaturas da Laura e a dar violetas às senhoras, numa espécie de quiosque parisiense montado no balcão da plateia. É assim que eu entro no teatro. Deram-me um camarim debaixo do palco e eu achei que era um desrespeito por mim, numa peça com onze homens e a Laura, atirarem-me para um camarim junto do fosso da orquestra. Resolvi então agarrar nas minhas roupas de "gigolette" e subi ao camarim do Morais e Castro e do Rui Mendes (que eu achava uma brasona!) pedir-lhes se me podia vestir ali. Eles lá me aceitaram mas a Laura, quando soube, mandou a Teresa costureira dizer-nos que não consentia aquelas poucas-vergonhas no seu teatro. Com quinze anos acabados de fazer respondi " - Nem pensar!" E despedi-me.MJS - E depois?LG - Tinha a sensação de ter Lisboa aos pés. Como tive pressa de crescer, os meus quinze anos pareciam alguns mais. Era gira e a passagem pela peça trouxe-me uma fartura de admiradores. Depois..., numa espécie de voragem, de vendaval, em apenas dois anos, entre os meus quinze e os dezassete, foi quando comecei a frequentar os cafés, as tertúlias da noite. Passava o tempo entre a "Mansarda" e o "Cantinho dos Artistas". Aos dezassete fui viver com o Sérgio Guimarães e aos dezoito fiz a minha estreia no teatro. Penso sempre que tive muita sorte em ter vivido naquele tempo e não quinze ou vinte anos mais tarde. Naquela época só se bebia copos. Não havia as solicitações de hoje. A noite era mais inocente. Tive que aprender a beber bagaços muito cedo, não porque gostasse, mas porque era o que se bebia no círculo que me adoptou e, para os acompanhar, até as madrugadas e as manhãs romperem, tinha que me aguentar como eles, fazendo o que eles faziam. O meu círculo era o do Monumental e do Parque Mayer. Foram a minha Universidade. No Riba d'Ouro cruzávamo-nos com os do círculo do Vává. O que eu aprendi, os livros que li, os autores que passei a conhecer naquelas noites... Que grande escola! Mais uma vez um anjo guiou-me até lá. Não tenho dúvidas. Muitos foram os anjos que me acompanharam ao longo da vida. Percebes agora que o meu percurso é um milagre, que é o percurso de uma vida fadada?MJS - Imagino que a vida com Sérgio Guimarães tenha sido muito agitada. Não foi ele que para te provar o seu infinito amor por ti cortou um dedo e atirou-to aos pés?LG - Sim, sim. Era completamente louco. Eu ainda não tinha dezassete anos quando decidimos viver juntos. Demos uma grande festa no dia dos meus anos e havia um bolo enorme com vinte e duas velas, que era a idade que eu dizia ter. O Sérgio resolveu desmascarar-me diante de toda a gente e comeu as velas que estavam a mais no bolo! Um dia, no Hotel Mundial, pediu para sobremesa os crisântemos da Beatriz de Sousa Santos, que estavam em cima do piano. Eu, miúda, achava aquilo um disparate total, achava que aquelas cenas me deixavam mal vista.MJS - Foi ele quem te ajudou a começar a sério no teatro?LG - O Sérgio? Nem pensar. Fez tudo para boicotar a minha estreia. Podia ter sido um belíssimo Pigmalião e não foi.MJS - Chamava-se Sérgio o teu primeiro grande amor?LG - Não, gostava muito do Sérgio, da sua prodigiosa inteligência e cultura, mas o meu primeiro grande amor tinha outro nome. Já fazia teatro quando me apaixonei pela primeira vez. Loucamente. Pouco tempo depois de nos conhecermos embarcou como miliciano para a guerra, para Angola. Mal chegou a Luanda telefonou-me e pediu-me em casamento, tinha muita pressa, era urgente tratar dos papéis para nos casarmos imediatamente por procuração. Eu não quis que fosse por procuração, tinha que ser cara a cara. Por sorte pude ir em tournée a Angola e Moçambique e depois fiquei em Luanda com ele. Aí sim, fui feliz, verdadeiramente feliz. Brilhava tudo à minha volta. Não sentia o chão debaixo dos pés. O contacto com o espaço africano e a paixão que sentíamos um pelo outro fez daquele tempo um sortilégio na minha vida. Durou cinco anos - conhecemo-nos, amámo-nos, casámos, tivémos um filho e separámo-nos. Passou...MJS - E nós vamos passar para outras cenas, as do teu trabalho como actriz. Tens preferência pelo teatro, pelo cinema, pela televisão?LG - O que eu gosto é de representar. Tenho feito mais teatro, é verdade, mas gosto sempre de representar, seja qual for a linguagem, seja qual for o registo e o formato. Depende muito de quem dirige. O actor está sempre muito dependente do método do director. O processo de depuração da personagem é que é diferente nos diversos discursos. No teatro há muito tempo para pesquisares, procurares vias, para imaginares biografias da personagem e aprofundares o teu papel. As personagens que conheço bem são as que trabalhei no teatro. Sei tudo delas, fui podendo acrescentar e tirar coisas, até tentar encontrar aquele segundo mágico em que parece que tudo fica tão simples que é mesmo verdade. Realmente em cinema, e então em televisão nem se fala, temos muito pouco tempo para esse labor. No entanto, temos uma cena para conseguir isso. É como cantar uma canção. Uma canção dura três minutos e nesse tempo tens que contar uma história. No cinema há a câmara, com quem tens que saber estabelecer uma relação de sedução. No teatro tens o público, ali bem diante de ti. É outra coisa. Mas quando me reencontro a fazer cinema, gosto muito. No primeiro dia fico aflitíssima, com medo de não ser capaz, mas no segundo só penso no bom que é fazer cinema. A cumplicidade que se estabelece entre os actores, a equipa técnica e de produção, o director de fotografia, o realizador, é também mágica. MJS - Deves saber que "imprimes" bem quando a câmara se vira para ti. Essa cintilação rara, que só alguns têm, é da natureza do talento?LG - Não sei bem, mas deve ter a ver com a pele, com a luz que trazemos connosco e que faz às vezes com que um actor pequeno se transfigure e fique grande. Não tem nada a ver com beleza e acho que ultrapassa o talento. O talento é da ordem do subjectivo e também é condicionado por muitos factores. Podes ser extraordinária hoje e falhares amanhã, podes responder no superlativo de ti às indicações de um determinado director, e embaciares com outro. Para além da vocação inicial que existe em ti para exerceres um ofício, precisas depois de trabalhar muito. Para obteres bons resultados no que quer que faças, não te podes acomodar, não podes espreguiçar à sombra do que imaginas ser o teu talento. Lembro-me do Fernando Lopes dizer, citando o Bresson, que os actores são assim uma espécie de marionetas, de objectos que, sobretudo no cinema, são tecnicamente manipuláveis segundo o desejo do realizador. Vivem de ser bons objectos, bons captadores de imagem. Voltamos à tal luz própria de cada actor, a que se deve poder associar qualidade técnica e emocional de representação para garantir alguma verdade. Os planos são normalmente muito curtos, por isso é que gosto tanto de planos-sequência, porque dão uma outra respiração e as cenas ganham fluidez. Essa respiração e fluidez ajudam-te a construir melhor o teu papel e a habitar com outra presença as cenas que vais representar. MJS - Há também a questão do método, ou dos métodos. Do actor, dos outros actores com quem contracena, dos diferentes directores que o dirigem. Tens uma receita própria?LG - A uma dada altura percebe-se que há que encontrar o nosso método de trabalho próprio, sabendo que devemos estar permeáveis a qualquer outro. O actor tem que saber captar as vontades e os modos diferentes de trabalhar dos outros e fazer uma súmula de tudo com a sua própria técnica. Eu, por exemplo, gosto muito de texto, gosto de saborear a língua portuguesa presente nos textos que tenho para dizer. Fiz uma aprendizagem, curta, de cerca de ano e meio, na escola de um grande mestre, René Simon, em Paris, onde o método era stanislavskiano e onde a palavra era sempre privilegiada. Durante muito tempo pensei que aquele era o melhor método, o método. E não é bem assim. A arte de representar é complicada de mais, para poder caber num único método. Outro grande mestre, Peter Brook, é que fala bem sobre isso. O modo de esvaziar ou de encher uma personagem passa, para uns, pela palavra, mas também pela nossa vida, pelo que fomos aprendendo, pelo que queremos saber da personagem em causa, pelo que conseguimos inventar para o efeito, pelo que somos capazes de lembrar e de esquecer. Mas o Brook preconiza exactamente o contrário do que acabei de te dizer - para chegares à tua personagem deves limpar tudo o que tens dentro de ti, como uma esponja ou um mata-borrão, e começares a acrescentar só aquilo que a personagem te pode trazer. Chega-se a conclusões muito mais simples, mais puras. E pode-se tentar que isto aconteça assim ao fazer-se uma telenovela, por exemplo. O imediatismo do trabalho em televisão, tal como se faz hoje em dia, é por um lado pavoroso, mas também é muito engraçado, porque com a base que tens dentro de ti e com o teu esquema de representação, consegues facilmente habitar sem problemas as mais variadas situações. Para um actor, em televisão e também em cinema, a primeira "take" é sempre a melhor, a mais sincera. Não me importo de fazer todas as "takes" que os directores desejam repetir (na maior parte das vezes só por razões técnicas!) mas, a uma dada altura, parece-me que já esgotei a minha capacidade de acrescentar alguma coisa à personagem e tenho medo de me desconcentrar.MJS - De todos os papéis que já representaste ficaste especialmente presa a algum?LG - Há personagens mais marcantes que outras. Há personagens em que consigo distanciar-me delas e vê-las como pessoas, inteiras, de carne e osso, com maneiras de andar só delas, tons de voz bem definidos, uma respiração própria. A Tatiana do Gorki, por exemplo, a senhora Lapena, da peça "A Guarda" de Benjamino Ioppolo, que foi uma experiência fonética muito interessante a partir de uma proposta de tradução do Jorge Silva Melo e encenada maravilhosamente pelo José Alberto Osório Mateus, nos Cómicos. A teorização do trabalho foi intensa e constante nessa peça. O José Alberto dava-me todos os dias pistas novas para a composição da personagem, eram umas deixas muito abstractas que eu depois tinha que tentar colar. Um dia diz-me ele ao telefone "- É verdade, a senhora Lapena não tem um dente." E eu dei voltas à cabeça para chegar lá. Pintar um dente de preto não dava jeito nenhum, como é que então poderia eu fazer? Naquele tempo eu tinha umas esqueléticas nos molares e resolvi tirá-las. Quando cheguei ao ensaio e experimentei falar sem os dentes, resultou. Ficou uma senhora Lapena sem molares, o que deu logo outra maneira de falar e de estar à personagem, pormenor que a enriqueceu imenso. Estás a ver, siciliana, com falta de cálcio, era mais que natural que a senhora Lapena tivesse aqueles buracos na boca, a verem-se quando se ria e a darem-lhe um tom específico quando falava! A Carmen, do "António, um rapaz de Lisboa", é outra dessas personagens que ficou cá dentro.MJS - Há alguma particular que tenhas pena de não ter feito?LG - Tenho um autor de estimação - Tchekov. Na escola de René Simon tínhamos todos rótulos. Eu era considerada a actriz de sensibilidade e fiz muitas vezes a Nina de "A Gaivota", com vários Treplevs a darem-me réplica. Mas nunca representei a Nina em teatro. Hoje já não tenho idade para esse papel, mas tenho idade para fazer a Arcadina. Gostava imenso de representar Tchekov, sobretudo "A Gaivota".MJS - E os clássicos gregos? LG - Nunca fiz teatro clássico. Fiz uma pequena incursão nos neo-clássicos, numa peça de Racine e nada mais. Como comecei muito cedo a fazer papéis de mãe, há uma personagem que gostava imenso de abordar - a "Medeia". É o lado da mãe que me falta. Os papéis muito fortes de mães sempre se deram bem comigo. Talvez por gostar naturalmente de exercer essa função na vida, não sei.MJS - Disseste, no princípio da nossa conversa, que tens por hábito calcorrear Lisboa em passeio, até porque tens muito tempo livre, sobra-te tempo de ócio. Pressenti alguma amargura nessa referência. Acertei?LG - É verdade. Nunca fui tão ociosa, estou mesmo a tornar-me preguiçosa. Desde que deixei de fazer parte de elencos fixos, em companhias, tenho pouco trabalho regular. Ainda não há muito tempo estive alguns anos no TEC, ia para Cascais e vinha todos os dias. O meu filho estava ainda numa idade de estudos e achei que tinha que assegurar uma base certa para fazer face à vida. Devia haver suficiente mercado de trabalho para os actores, que lhes permitisse o luxo de poderem ser "free-lancer". Não sendo o caso, só mesmo fazendo parte do elenco fixo de uma companhia, mas há tão poucas e as que há estão tão fechadas em si mesmas, que às tantas acaba-se o circuito e ficas sem ter onde trabalhar. Faltam-nos empresários teatrais, como já houve. Falta-nos mais teatro comercial. Passou-se do exagero do teatro comercial de antes do 25 de Abril, para o exagero do teatro sério independente, onde se produz muito bom teatro, mas que deixa de fora muita coisa. Vais a Madrid e vês de tudo - teatro de repertório, teatro experimental, musicais, comédias ligeiras. Há para todos os gostos. O único caso empresarial que temos entre nós, muito louvável, é o do Filipe La Féria. Neste momento, de facto, um actor na minha situação pode estar meses sem receber qualquer proposta de trabalho.MJS - Isso significa rigorosamente o quê?LG - Significa que não ganhas. Trabalhas a recibo verde, és trabalhadora por conta própria, não tens hipótese nenhuma. Se não és rica, se não és herdeira, se estás sozinha como eu, ficas numa situação de total desamparo. A tal ociosidade é muito triste e desgastante. Tira-nos auto-estima, a máquina perde óleo... Podes, é claro, ter projectos próprios (e eu tenho muitos na cabeça, um dos quais era poder fazer Brecht em concerto, outro era fazer um trabalho sobre música e poesia portuguesas!) e lançares-te na produção. Mas a energia e o tempo que perdes nos organismos públicos, a pedir apoios e à espera que te atendam, é qualquer coisa que não consigo sequer imaginar poder tentar. E depois, olha, eu só sei representar.MJS - Dá-me uma palavra de eleição.LG - Liberdade. Verdade.