"Quando a terra sorrir um dia"
O homem cujo corpo morto, furado de balas e coberto de moscas, a farda rasgada e descomposta, roubado das botas e do grosso anel de ouro que o identificava, vimos ser arrastado e atirado para um caixão como um animal selvagem, foi um dos últimos grandes líderes nacionalistas africanos, na linha de Senghor, Mandela ou Amilcar Cabral.Os soldados que carregaram o caixão eram seus inimigos, a mulher que o chorou já não era sua, a terra onde ficou não lhe pertencia. Só a bandeira em que o enrolaram era a dele, a bandeira da UNITA por ele criada em 1966 e à qual dedicou a vida.A morte tantas vezes anunciada de Savimbi consumou-se em tempo providencial, permitindo a José Eduardo dos Santos levar na bagagem para Washington, agora que o Presidente George Bush procura consolidar fontes alternativas fornecedoras de petróleo, a cabeça de um adversário irredutível da depredação das riquezas naturais de Angola. Nomeadamente do petróleo. "O que temos assistido nos últimos tempos", escreveu Savimbi em 1995, "não é apenas hipotecar a Pátria. É vender a Pátria. É por isso que Angola, país tido como um dos mais ricos do continente, hoje figura com muita vergonha na lista dos países mais pobres do mundo."Foi em 1970 que ouvi falar pela primeira vez em Jonas Savimbi. Encontrava-me então na região do Baixo Cunene, acabara de escrever um livrinho sobre Maio 68 que a PIDE apreendeu um mês depois e não podia deixar de ficar interessada por este homem, que contrariamente aos outros dirigentes dos movimentos de libertação, alguns dos quais eu conhecia, dirigia a luta contra o colonialismo português no interior de Angola, ao lado dos seus homens. O que faria até ao fim da vida, recusando os exílios dourados que lhe ofereceram, e foram muitos, porque lhe era perfeitamente indiferente viver numa palhota ou numa mansão de luxo. Não que fosse modesto, mas porque a sua ambição era muito maior.Desde os seus tempos de estudante, contactando os diversos movimentos de libertação até se decidir a formar o seu, Jonas Savimbi definiu as linhas mestras do seu ideário: "O Homem angolano na UNITA é entendido como uma entidade pluriforme, com origens diferentes, com cores diferentes, pertencente a grupo étnicos diversos, professando credos diferentes. Mas neste imenso e complexo mosaico, constitui uma única Pátria que é de todos porque não é de ninguém."Como Amilcar Cabral, Jonas Savimbi propôs-se desde o início defender a "identidade africana", os seus "valores tradicionais, culturais, religiosos", não cedendo jamais à tentação de se transformar num travesti ocidental. O que não o impedia de se manifestar a favor de um "progresso económico e social, através do acesso à instrução e à Educação, à saúde."Em conversas, afirmava continuadamente: "a riqueza de Angola não são os diamantes nem o petróleo. É a agricultura, sem a qual não nos bastaremos a nós próprios. E são as pessoas. É preciso dar-lhes confiança nelas mesmas."Foi na Jamba que, em 1988, conheci Jonas Savimbi. Tornara-se uma personagem mítica, quer para os que o admiravam quer para os que o odiavam. A mim impressionou-me sobretudo a afabilidade e a grandeza com que acolhia os visitantes, fosse num simples "jango" das Terras do Fim do Mundo ou na "villa" que o rei de Marrocos punha à sua disposição quando vinha a Rabat e onde o visitei por duas vezes.Era um homem de uma inteligência fulgurante, com grande sentido de humor e uma soma invulgar de conhecimentos, considerando as condições em que habitualmente vivia. Gostava de falar e de contar histórias, referindo outras figuras com quem se cruzara aos longo de uma existência rica em acontecimentos. Os seus comícios assemelhavam-se aos de Fidel Castro: era capaz de falar horas sem aborrecer ninguém. E eram muitos os que vinham de longe, caminhando se necessário milhares de quilómetros, para chegar à Jamba que se tinha transformado, de certo modo, numa Terra prometida.O regime de Luanda e os seus seguidores traçaram de Savimbi o retrato de um homem brutal, sedento de poder, incumpridor de acordos e fomentador de guerras.Mas as constantes ameaças de morte ao líder da UNITA, o massacre dos seus militantes e os sistemáticos incumprimentos por parte do Governo dos Acordos firmados, desde Alvor a Lusaka, foram ignorado ou esquecidos. E foi assim que a UNITA se deixou empurrar para as matas como forma única de sobrevivência e retomou as armas como único meio de fazer ouvir a sua voz.Jonas Savimbi, como ele próprio admitiu em diversas entrevistas, não era propriamente um santo. A guerrilha não é, nunca foi, uma escola de democracia e as condições em que viveu terão condicionado algumas das suas acções mais contestadas. Mas foi também, é preciso reconhecê-lo, um homem que procurou incessantemente o diálogo. Contra a opinião dos seus companheiros da direcção do Partido, foi a Gbadolite e a Bicesse para fazer a paz e a reconciliação nacional. E esse era o fundo da questão.Lusaka não se cumpriu, porque a situação se alterara: José Eduardo dos Santos assumira já como objectivo prioritário a eliminação física de Jonas Savimbi e a ofensiva, uma vez mais, foi desencadeada por iniciativa das forças governamentais. Ao mesmo tempo que o conluio dos interesses internacionais levava ao isolamento da UNITA. Jonas Savimbi foi declarado o responsável exclusivo da guerra e o seu assassinato chegou a ser defendido publicamente como condição de paz.E, no entanto, disse-me Savimbi quando o encontrei pela primeira vez, "não se faz a guerra para destruir, mas para criar um mundo melhor, mais livre". É verdade que ele próprio teria de aprender a viver nesses mundo mas ele fazia parte do seu sonho e, não obstante as dificuldades do percurso, o combate que travou ajudou a transformar a sociedade angolana e a formação de uma geração capaz de construir a Democracia.Fiel aos ideais da sua geração, Jonas Savimbi recusou sempre a hipótese de uma partilha do território, mesmo quando chegou a dominar dois terços de Angola. Mas, dizia a José Eduardo Agualusa, em Fevereiro de 1995, "não queremos que Angola interior seja igual a Luanda". Isto é, para ele era fundamental preservar os valores africanos, mas acreditava que seria possível que as pessoas se respeitassem no dia em que houvesse paz. "Vão entender-se", disse.Assumia-se totalmente como um chefe e comportava-se como se não tivesse medo, porque de outro modo não poderia incutir coragem. Em 1996, numa entrevista à TSF, explicou: "Eu não conduzo o Partido da rectaguarda, prefiro passar à frente. Defeitos tenho, como os outros".E como todos os outros, Jonas Savimbi era, naturalmente, um personagem controverso e contraditório. Mas teve a qualidade não pequena de durante mais de quarenta anos fazer frente a um Império, a um Governo ditatorial, a uma comunidade internacional que impiedosamente, nos últimos anos, lhe congelou os meios necessários à sobrevivência do Partido. E continuou a sua luta. Sem essa luta era altamente improvável quer uma oposição civil e as Igrejas tivessem levantado a voz contra a violência do regime, em nome dos Direitos Humanos e da Democracia. Em 1996, na entrevista à TSF já referida, Jonas Savimbi disse: "Eu não vou morrer no exílio. Disse isto ao Governo uma vez, ao Higino, ao Muteka, fui até um bocadinho rude: vocês vão querer matar-me, vocês vão ficar connosco. Somos todos tão angolanos como vocês, não é verdade? Portanto, eu preparo o Partido para este risco de atentados e se um dia ficar, esse risco existe, o Partido tem de ter quadros para continuar."Há muitos anos, num fim de tarde, Jonas Savimbi contou-me que o seu sonho era fazer da sua terra uma pátria livre onde cada um sentisse vontade de trabalhar e de viver. Onde fosse, finalmente, possível arrumar as armas e descansar depois de longo, longo tempo de fadigas. Poder ler, contar histórias ou escrever, como já o fizera e gostaria de voltar a fazer "quando a terra voltar a sorrir um dia".*jornalista