Sobreviventes do Tarrafal reunidos em Lisboa
São seis os sobreviventes do campo de concentração do Tarrafal, criado em Cabo Verde pelo regime salazarista para punir os oposicionistas do Estado Novo, mas ontem de manhã só três se apresentaram à evocação anual dos 330 camaradas que, com eles, viveram aquele tempo de repressão política. Por razões de saúde, explicaram José Barata, Edmundo Pedro e Josué Romão, os seus camaradas não puderam estar presentes. Foi José Barata, em nome da União dos Resistentes Anti-fascistas Portugueses (URAP), quem recordou o sacrifício dos detidos no Tarrafal e exprimiu a sua desilusão por sentir que a celebração da memória dessa resistência tende a diluir-se num mundo de relações de compra e venda de propriedades. Considerou excessivo, para a memória dos que ali sofreram, que o Forte de Peniche, bem como a sede da polícia política do fascismo, a PIDE-DGS, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, sejam considerados meros edifícios a ser demolidos para neles se erguerem pousadas ou prédios de apartamentos. Edmundo Pedro, o mais jovem preso do Tarrafal - tinha 18 anos -, reforçou este aspecto apelando para que o campo de concentração se tornasse num memorial dos direitos humanos. O "campo da morte lenta" abriu no dia 29 de Outubro de 1936 e na sua primeira fase recebeu 330 detidos. Em 1945, em consequência da derrota do nazi-fascismo, Salazar anunciou o seu encerramento, mas o repatriamento dos presos fez-se a conta-gotas e o último detido, Francisco Miguel, foi transferido para Caxias no dia 31 de Janeiro de 1953. Neste período morreram ali 32 homens, entre eles Bento Gonçalves, secretário-geral do Partido Comunista, e Mário Castelhano, dirigente da central sindical anarquista.O campo do Tarrafal surgiu para punir os adversários do regime salazarista "refractários à disciplina", salientava o Decreto-Lei 26539 que o criou: "A colónia penal destinar-se-à a presos por crimes políticos que devam cumprir a pena de desterro ou que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refractários à disciplina". Era um campo de concentração destinado a enterrar, longe dos olhares das famílias, os opositores mais acérrimos do Estado Novo: comunistas, anarco-sindicalistas e republicanos democráticos."Bento Gonçalves, Secretário Geral do PCP, e Mário Castelhano, destacado dirigente anarquista, que fora secretário geral da CGT, foram os principais dirigentes das duas correntes fundamentais que confluíram naquela tentativa de greve geral revolucionária. Ambos morreram no Tarrafal. Foram dois homens exemplares - dois homens cultos, fraternos e de uma enorme simplicidade", recordou Edmundo Pedro.Falando de Bento Gonçalves, lembrou que "era respeitado por todos". "Até os carcereiros se rendiam, complexados, perante o seu perfil físico frágil e curvado, mergulhado em reflexão permanente. No dia do seu funeral (e contra todas as rígidas normas em vigor dentro do campo, normas que ostensivamente ignorámos) formámos duas alas, ao longo da rua principal, para lhe prestarmos a devida e derradeira homenagem. Os carcereiros, que não se atreveram a impor a norma disciplinar em vigor, mostravam um hipócrita ar compungido. Não conseguiam esconder a sua má consciência", contou."Houve outras mortes ocorridas em condições igualmente trágicas que marcaram para sempre o meu espírito. Uma das que mais me impressionou, foi a de Ernesto José Ribeiro, um operário da construção civil detido juntamente com o meu pai. Era, como eu, um convicto comunista. Quando sentiu que a morte se aproximava, visto que ficara anúrico durante três dias, dirigiu-me palavras que conservo, gravadas a fogo, na minha memória. Elas adquirem hoje, perante o que tem acontecido, um trágico e especial significado: - "Edmundo, sei que vou morrer em breve. Morro cheio de desgosto porque não poderei partilhar, com os camaradas que sobreviverem a esta prova, a entrada na sociedade sem classes - na sociedade comunista!"