Vespeira: morreu o menino imperativo do surrealismo português
Criou um universo onírico, feito de formas orgânicas que eram ao mesmo tempo animais e vegetais. Foi decorador, poeta, pintor. A sua obra, objecto de uma retrospectiva recente, ficou marcada pelo trabalho rigoroso e regular. Marcelino Vespeira foi um surrealista, um dos primeiros que surgiram em Portugal. Morreu ontem, em Lisboa, com 76 anos. O seu corpo está em câmara-ardente no Centro Paroquial Santa Joana Princesa, em Lisboa, de onde sairá esta manhã, às 10h, para o Cemitério do Samouco, perto de Alcochete, onde vai a sepultar.Se só pudéssemos citar uma obra de Marcelino Vespeira, ela seria sem dúvida "O menino imperativo". Tratava-se de um manequim, sem braços nem cabeça, como muitos manequins que existiam em Lisboa durante a década de 50. Mas Vespeira dotou-o de uma cabeça - um enorme búzio - e, à laia de braços, colocou duas velas acesas sobre os ombros. Era uma obra surrealista, e foi como tal que integrou uma das mais relevantes exposições do Grupo Surrealista de Lisboa, na Casa Jalco, em 1952. Nesta obra, Vespeira servia-se da estranheza inquietante que a pintura (e também a psicanálise) descobria nos manequins de montra durante toda a primeira metade do século XX. Mas não só: aliava a representação do corpo humano a uma forma animal, a do búzio, e, através da utilização das velas, abria a imaginação do espectador ao insólito dessa associação. Esse era o método de trabalho surrealista, que Vespeira, com outros artistas da década de 50, tinha adoptado. Marcelino Vespeira nasceu no Samouco, em 1925. Estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio mas, em 1942, abandonou este curso pela arquitectura e a Escola de Belas-Artes. O interesse não era muito, pois logo no ano seguinte abandonou o curso, e passou a dedicar-se a trabalhos de artes gráficas e decoração. Entretanto, contactou com o grupo do café Herminius, que frequentava, e tomou contacto com o Neo-realismo e com o Surrealismo. Sobre estes tempos, contou mais tarde a Manuela Cruz, que o entrevistou: "O abandono do Neo-realismo deve-se não só à tomada de conhecimento da problemática surrealista, mas à necessidade de satisfazer inquietações vivenciais no sentido da descoberta da totalidade do homem. O que não acontecia fazendo uma pintura 'engagé' em que se procuravam resolver problemas extra-pictóricos". Entre discussões e jogos de palavras - o Surrealismo sempre viveu através do jogo -, as ideias do movimento iam-se cimentando na mente dos jovens artistas, que rapidamente trataram de pô-las em prática. Mesmo assim, Vespeira ainda foi uma das principais figuras do Neo-realismo em Portugal. Em 1947, afastou-se do movimento, e começou a realizar trabalhos de vertente onírica, muito apoiados na figuração. Dois anos mais tarde, depois de um Verão passado nas Berlengas, aproxima-se da abstracção, submetendo-a ao desenho de conotações eróticas. Para Vespeira, a pintura esteve sempre ligada ao desejo. Em 1952, o Grupo Surrealista de Lisboa, do qual faziam parte Fernando de Azevedo, Dacosta, António Pedro e José-Augusto França, entre outros, realiza três exposições na Casa Jalco, nas quais Marcelino Vespeira participa. As exposições, onde mostra os trabalhos realizados desde 1949, provocam um enorme escândalo na Lisboa burguesa e tacanha da época e, a partir daqui, Vespeira abandona periodicamente a figuração. Esta será uma das fases mais interessantes da sua obra, que pôde ser vista numa retrospectiva no Museu do Chiado, em 2001.Este tipo de pintura associa ritmos musicais, adaptados do jazz norte-americano, à pintura, criando aquilo a que José-Augusto França chamou "espaço elástico". Até finais da década de 50, Vespeira irá explorar este tipo de pintura e, durante as duas décadas seguintes, regressará à figuração de natureza erótica e bio-vegetal. Entretanto, continuará a trabalhar como designer gráfico, ilustrador e decorador, no que, aliás, foi uma constante dos artistas portugueses activos durante as décadas de 50 e 60.Em 1997, José-Augusto França, Fernando de Azevedo e Marcelino Vespeira celebraram os 50 anos do Grupo Surrealista de Lisboa no Museu do Chiado. Todos eles tiveram percursos muito diferentes, orientando a sua vida, depois desses anos revolucionários, para outras actividades. Mais tarde, em 2001, o Museu do Chiado consagrou a Vespeira uma retrospectiva, acompanhada por um catálogo cuidado e pelo estudo perspético de uma obra multifacetada. Este ano, a polémica exposição "Surrealismo em Portugal", com retiradas de obras, insultos na imprensa e fecho de uma exposição não devia destoar muito de outros escândalos, velhos de 50 anos. O Surrealismo continua a dar que falar, a abalar as certezas e as ideias feitas de cada um. Marcelino Vespeira morreu ontem em Lisboa, com 76 anos. O menino imperativo que um dia imaginou continua a inquietar.