Maurizio Pollini - músico intemporal
Pollini interpreta hoje, no Grande Auditório da Gulbenkian, Chopin e Debussy. O Mil Folhas propõe um olhar pela carreira deste pianista através da sua discografia, recentemente compilada e reeditada no nosso mercado
Custa a crer, mas é verdade. Pollini celebra, na digressão que o traz hoje à Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, os seus 60 anos de idade que cumpriu no passado dia 5 de Janeiro. Não deve existir melhor exemplo para provar que o tempo passa depressa, mas este não é o momento para nostalgia na vida daquele que é talvez a mais incontornável referência da música para piano do século XX.Pollini contava apenas 18 anos quando ganhou o Concurso Chopin em Varsóvia e ouviu da voz de Arthur Rubinstein em pessoa: "Tecnicamente, ele já toca melhor do que qualquer um de nós no júri." A primeira palavra da frase viria a ficar eternamente ligada à sua carreira. Ele é o pianista com a técnica perfeita, capaz de reproduzir a partitura como se de um espelho se tratasse. Para alguns, no entanto, esse é o seu único problema, que se traduz numa frieza estranha a quem se quer aproximar da verdade da música.Seja quais forem os argumentos desta discussão, Maurizio Pollini ficará conhecido como um músico fiel ao texto, um intérprete livre de maneirismos e tiques superficiais, senhor de um repertório vasto e intemporal como a sua própria forma de tocar. Quem mais construiu uma carreira da sua envergadura interpretando a música do seu tempo? Em 1927 o arquitecto italiano Gino Pollini escrevia num manifesto do Gruppo 7, do qual foi membro fundador: "Queremos, apenas e exactamente, pertencer ao nosso tempo, e a nossa arte deve ser a que o nosso tempo requer." O destino escreve-se sempre de forma surpreendente e talvez sejam essas as palavras que hoje, 75 anos depois, melhor caracterizam o seu filho, Maurizio Pollini.O retrato mais exacto da sua carreira é, no entanto, dado pela sua longa discografia que se estende de Mozart aos grandes mestres da actualidade e que é agora alvo de uma seleccionada reedição pela editora Deutsche Grammophon para a qual Pollini já grava em exclusivo há mais de 30 anos. Apresentada numa caixa de luxo com 13 CD, conta ainda com novas notas de programa e fotografias desconhecidas do público, assim como um grafismo próprio como que a dar unidade à compilação.O primeiro CD relata o encontro do pianista com o maestro Karl Böhm e a Filarmónica de Viena. No Concerto em Lá Maior, K488 de Mozart, não se podia esperar melhor resultado, com Pollini a demonstrar uma variedade de articulação extraordinária e a seguir na perfeição a fluência rítmica de Böhm. O Concerto Imperador de Beethoven revela também a sua autoridade interpretativa destes dois mestres. Os dois CD seguintes trazem-nos gravações mais recentes com Claudio Abbado e a Filarmónica de Berlim. Os concertos nº3 e nº4 de Beethoven, o Concerto de Schumann e o Concerto em Ré menor de Brahms dividem as opiniões dos críticos quanto às versões escolhidas. Mas no concerto de Schumann são de louvar as duas gravações, com Abbado e com Karajan. A última, de 1972, apesar de menos equilibrada, talvez demonstre de forma mais efectiva a sensibilidade e individualidade do então jovem pianista. É esse o problema de olhar para trás. Quando ouve as suas próprias gravações, Pollini admite mesmo que "é como olhar para outro pianista a tocar", mas também não perde muito tempo com isso, pois considera que cabe ao público apreciar.A edição continua com uma das jóias de Pollini, a Sonata Op. 27, nº1 num CD dedicado a Beethoven e que inclui as "Sonata ao Luar", "Waldstein" e "Tempestade". Não menos conseguida é a "Hammerklavier", cuja gravação premiada é tida por alguns como responsável pela forma como hoje se compreende a própria obra. A elaborada visão estrutural de Pollini é bem exemplificada no CD com obras de Schubert onde o "tour de force" da Sonata D959 é o ponto alto.Os estudos de Chopin foram, com pena nossa, reduzidos aos Op. 25, mas as principais obras da sua discografia contemporânea ficaram bem representadas. Aqui, a sua visão analítica e intelectual atinge uma compreensão do texto quase miraculosa. "E fez-se luz" é a expressão acertada para descrever a sua "Petrushka" de Stravinsky, as obras de Schoenberg ou a 2ª Sonata de Boulez. Com muito gosto vemos Nono e Manzoni a encerrar esta edição, que conta ainda, como extra, com o Concerto nº 1 de Chopin registado durante o concurso que abriu as portas da sua carreira.Hoje na Gulbenkian, Pollini irá revisitar o passado na interpretação dos 24 Prelúdios de Chopin, cujo disco foi muito aclamado, e olha também para o futuro, prevendo já uma próxima gravação do 2º Caderno dos Prelúdios de Debussy, na sua intenção de continuar a alargar o repertório. A arte da sugestão atinge nestes Prelúdios o seu expoente máximo, e para uma noite brilhante no Grande Auditório não será preciso mais do que o rigor a que Pollini sempre nos habituou.